São Paulo, sábado, 13 de julho de 1996
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'Master Class' é o renascimento de Marília Pêra

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Em "Master Class", Marília Pêra aparece como em "Apareceu a Margarida", a grande peça de duas décadas atrás, que estabeleceu o mito de Marília Pêra. Comediante, voz anasalada, falando sem parar, na "aula" do mito que é Maria Callas.
Uma "aula magna", na tradução que Millôr Fernandes queria e não conseguiu manter, por força do gosto de parte do público, mais do que da produção. Pois aula magna, além de ser a tradução exata, é do que se trata.
Não apenas aula magna de Maria Callas, nas aulas que ela de fato deu em Nova York e que inspiraram o autor Terrence McNally, mas também de Marília Pêra.
Em geral, mitos estão aí para cair; criados antes por lenda, ultimamente é raro que se sustentem na realidade.
Marília Pêra esteve perto de cair, na remontagem recente de "Apareceu a Margarida", também uma aula, no caso contra o regime militar. Estava então apenas alimentando o próprio mito.
Com "Master Class", ainda que o tema seja o próprio, o que se vê é "arte", é "verdade" e não "interpretação", no dizer da Maria Callas de Terrence McNally.
Também em "Master Class", porém, a verdade demora a mostrar a cara. Na tradição da comédia nova-iorquina, as piadas estão por toda parte, em especial no início.
São "one-liners", frases feitas, tiradas, até bem engraçadas. Por exemplo, com direito a envolvimento com a platéia, "Você!", para alguém nas primeiras fileiras, "Você não tem um 'look'".
E tome brincadeiras intermináveis e hilariantes sobre o "look", que é mais do que um "visual", mas a personalidade, a individualidade necessária ao artista. E "look" é o que ela vai cobrar de seus alunos.
Piadas assim, embora tenham algum significado, estão mais para a fórmula corriqueira e algo superficial da comédia "stand-up".
O "look", as tiradas com as "rivais", a idéia de que "alguém em algum lugar está tramando" contra ela, a grande artista, se juntam à intepretação de braços amplos e andar de desfile, inteiramente artificial, para compor a caricatura de Maria Callas, "La Divina".
Poderiam ser mero recurso de popularização, para tornar palatável a peça, mas não são. Não somente. O que se tem, não demora muito, é a arte, a verdade, debaixo da "interpretação". E Marília Pêra mostra então de onde surgiu, realmente, o mito Marília Pêra.
Com apenas um olhar, debaixo da máscara de "interpretação", mas também um olhar sustentado, levado pela ária de "La Sonnambula", no primeiro ato, ela detona não apenas a sua própria memória, mas a emoção no público.
Emoção que chega por espasmo, inesperada, sob os risos que dominavam e derrubavam as defesas, até então.
É na estreita passagem, no "lusco-fusco" entre o que parece, na "interpretação", e o que é verdadeiro, sustentado por "esses compositores que realmente conheciam o coração humano", como diz a personagem, que Marília Pêra faz a sua arte.
Não é antes, embora seja uma comediante como poucas -inspiradora e como que irmã de palco da também genial Denise Stoklos, por exemplo. Também não é depois da passagem, quando chega a ter uma cena melodramática, de joelhos no chão -mas de pequeno êxito, relativamente.
É na passagem que Marília Pêra expõe, não apenas Maria Callas, mas sobretudo ela mesma, Marília Pêra.
Nesse sentido, não faltam ensinamentos explícitos na "aula magna" de ambas, como quando lembram que Luchino Visconti -que dirigiu a cantora no La Scala- insistia que ela, Maria Callas, no papel de "uma aldeã suíça", não era aldeã suíça. Era, ainda, Maria Callas.
Muito do renascimento de Marília Pêra também é devido ao diretor, certamente. Jorge Takla, no espetáculo que estreou anteontem em São Paulo, conseguiu reunir a música com a arte da atriz de maneira inseparável -e inteiramente arrebatadora.
Em parte, na escolha do elenco de cantores "alunos", em particular com Julianne Daud, que faz a soprano Sharon e que é levada mas também leva Marília Pêra, com Verdi, para os mais grandiosos momentos de "Master Class".

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