São Paulo, sábado, 13 de julho de 1996
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Aumenta mistério da peça do herói oculto

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Se algum estudioso das idéias de Samuel Beckett (1916-1989) tivesse ainda esperanças de descobrir o que é que ele realmente quis dizer com "Esperando Godot", perdeu outro dia a última delas. Foram publicadas pela revista "The New Yorker" as cartas que Beckett escreveu a dois diretores de "Godot"
Em um tom que se diria assustado, alarmado, Beckett lava as mãos da peça que escreveu, quase como se não tivesse nada a ver com ela: "Eu não tenho opiniões formadas sobre arte teatral. Não sou versado no assunto. Não vou a teatro. Isso é ainda admissível. O que provavelmente deixa de ser admissível é que, assim sendo, eu tenha escrito uma peça, e que, escrita a peça, não tenha a menor noção sobre ela. Este é, lamento, o meu caso. (...) Conheço a dita peça tanto quanto qualquer outra pessoa que a leia com atenção. Não sei em que espírito a escrevi. A respeito dos personagens só sei o que eles dizem, o que fazem, o que acontece com eles. (...) Não sei quem é Godot. Não sei nem se ele existe ou não". Mencionando em seguida os personagens, Beckett afirma que não tem nada a ver com Estragon, Vladimir, Pozzo e Lucky. "Eles que se arrumem. Sem mim. Estamos quites, eles e eu".
Em uma outra carta, escrita a um pobre produtor que ia levar "Esperando Godot" no Canadá, Beckett repete afirmativas igualmente negativas e acaba por dizer uma coisa realmente espantosa: "Não se trata de maneira nenhuma de uma obra simbólica". Dito isto, e antes que o destinatário se refaça da surpresa, acrescenta: "O que há de significativo em Pozzo, por exemplo, não é quem seja ele, ou o que, ou que representa e sim o fato de que nada disto é sabido, de forma que, subitamente, podemos confundi-lo com o próprio Godot".
Uma vez criada, na cabeça do destinatário, esta minuciosa confusão, Beckett, depois de morder, sopra um pouco: "É possível que uma produção errada da peça, errada do meu ponto de vista mas com uma coerência devida ao puro entendimento que você tenha do trabalho, seja preferível. (...) Mesmo porque, não se pode garantir que o autor é que tem razão".
O que nos ocorre à primeira vista, ao ler essas recém-descobertas cartas, é que sua timidez, sua inapetência pelo envolvimento em círculos sociais e rodas literárias tenha levado Beckett a esses exageros de evitar se comprometer com sua própria obra. Quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969, Beckett o aceitou. Mas implorou à Academia Sueca que não o obrigasse a comparecer à cerimônia de entrega, em Estocolmo. Assustou-se com a entrega da láurea, o discurso, a casaca, os aplausos.
Seja como for, acho muito provável que a partir da estréia de "Esperando Godot", em Paris, ano de 1953, Beckett tenha sentido que com seu minimalismo, suas poucas palavras, marcaria igualmente a literatura do século, como o amigo, compatriota e modelo literário James Joyce. Foi intensa a amizade que se estabeleceu entre os dois exilados irlandeses. Joyce, já famoso com a publicação de "Ulysses", trabalhava furiosamente (levou 17 anos escrevendo o livro) no "Finnegans Wake". Para acalmar a expectativa de leitores do "Ulysses", que aguardavam, com uma ansiedade que ficou um tanto frustrada, o "Finnegans Wake", amigos de Joyce publicaram um livro inteiro de ensaios sobre o livro "em progresso", como diziam eles. O ensaio de abertura era o do amado discípulo Samuel Beckett.
O único abalo sofrido pela amizade entre discípulo e mestre foi devido a um mal-entendido sentimental. Joyce tinha uma filha amada, Lucia (fadada, aliás, a um futuro de incurável doença mental), que interpretou erroneamente a frequência das visitas de Beckett e as amabilidades que lhe fazia. Enamorou-se dele e Beckett, provavelmente com a mesma franqueza com que escreveria anos depois as cartas que citamos, informou à pobre Lucia que vinha à casa dela muito mais para ver o pai James do que para estar com ela. Houve lágrimas e estremecimemto de relações, como conta a biografia canônica "James Joyce", de Richard Ellmann.
No entanto - e para retomar o fio que perdi lá em cima - o êxito que teve "Esperando Godot" no mundo inteiro terá dado a Beckett a noção, ou a tranquila certeza, de que tinha escrito a peça emblemática do século de dúvidas que sucederia à Segunda Guerra Mundial. Eu diria que em grande parte o tom quase matreiro, quase despistador com que escreveu suas cartas aos que lhe pediam chaves e mapas para chegar a Godot, vinha da vontade que ele tinha de não dissolver os mistérios, não esclarecer o dúbio, não transformar a profecia em notícia.
Seja como for, escrita por Beckett em inglês e francês a peça, desde o título, põe o espectador a pensar em um Deus distraído, ou decadente, aguardado por dois vagabundos e que acaba mandando dizer a eles, e a todos nós, que hoje, pelo menos, não pode vir, não vem mais. Amanhã virá, quem sabe.
Pelo menos no Brasil "Esperando Godot" deixou uma lembrança trágica, que foi a morte, em 1969, de Cacilda Becker, que representava o papel de Estragon, ao lado do Vladimir de Walmor Chagas. A direção era de Flávio Rangel.
Em "Viver de Teatro" (Nova Alexandria), a biografia de Flávio que José Rubens Siqueira escreveu, o próprio Flávio relembra o triste dia de "Esperando Godot" no qual Cacilda nos deixou: Foi "no intervalo da peça, numa tarde em que Cacilda representava para estudantes. Tomou um café sentada no palco (ela não ia aos camarins, como se não quisesse se afastar daquelas tábuas e daquela paixão que foram a sua vida), sentiu uma dor de cabeça, apoiou-se em Walmor, em Carlão, em mim, e pronunciou suas últimas palavras: 'Acho que estou tendo um derrame cerebral'. Chegou ao hospital já em coma, resistiu a duas operações, resistiu 45 dias, resistiu, resistiu, resistiu. Até que nossa líder foi-se embora".
Para todos nós que amamos a doce pessoa e a esplêndida atriz que foi Cacilda Becker, sua morte dá uma dimensão a mais às tantas outras que têm "Esperando Godot".

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