São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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O que importa é a vida

LUÍS NASSIF

Um dos aspectos mais intrigantes da moderna opinião pública brasileira é a incapacidade de focar objetivamente problemas relevantes. É a maneira torta de torpedear bandeiras que beneficiam os chamados interesses difusos -isto é, aqueles interesses que não são representados por nenhum dos grupos organizados da sociedade.
O torpedeamento se dá por meio do superdimensionamento de pontos negativos genéricos das propostas que visam beneficiar esses segmentos, sem mensurar adequadamente sua intensidade, e sem focar o contexto geral do problema.
O caso da CPMF é clássico. Disse-se que vai pressionar os juros, que juros mais elevados significam mais custos para as empresas, que mais custos significam menos emprego e menos emprego significa mais recessão.
Logo, a CPMF provocará elevação de juros, desemprego e recessão. Não é isso que sugere a lógica? Mas qual o tamanho efetivo da pancada?
Tudo é dito genericamente, sem a menor preocupação em passar noção de proporção ao público. Beliscão ou direto no queixo, o alarido do crítico é o mesmo.
Vamos a pequenas comparações para se entender esse jogo de generalidades.
Hoje em dia, o custo de captação de dinheiro no mercado está por volta de 1,2% ao mês; o de empréstimo, entre 4% e 6% ao mês. Entre ambos, portanto, há um spread da ordem de 14 a 20 CPMFs. Há muitas razões para isso. Compulsório sobre depósitos, tributação, empoçamento de liquidez, receio de inadimplências, pouco importa. A questão é que a cunha de 14 a 20 CPMFs não provocou um vagido sequer desses campeões da racionalidade. Mas se se agregar uma CPMF a mais a esses 20, a economia se desestabiliza. Faz lógica? Evidente que não. A razão é que a 21ª CPMF vai para a saúde. E isso é imperdoável.
Nível de juros
Outro argumento é que, ao impor 0,2% de alíquota sobre os saques, os investidores em títulos públicos vão exigir 0,2% a mais na sua remuneração. O que o Tesouro vai perder aumentando 0,2% sobre o estoque da dívida, para compensar seus investidores, é mais do que a saúde vai arrecadar com o imposto.
Dito assim, fica parecendo que o nível das taxas de juros dos títulos públicos é um fator objetivamente calculado com base nas pressões dos investidores.
No ano passado, chegou-se a pagar 4,5% de juros ao mês pelos títulos públicos. Hoje em dia paga-se por volta de 1,2%. Nesse período, as taxas de juros dos títulos públicos caíram o equivalente a 16 CPMFs e os investidores não fugiram do mercado.
Agora, se a remuneração cair mais uma CPMF, os investidores fugirão em desabalada carreira; ou se as taxas dos títulos públicos aumentaram uma CPMF, vai quebrar o Tesouro.
Dá para entender essa lógica? Está claro como é esse jogo de argumentos e como se manipulam conceitos genéricos?
Mau imposto
Definitivamente, a CPMF não é um bom imposto. Mas nem vai acabar com o Brasil, nem a questão em jogo é a CPMF -essa é a monumental confusão de prioridades na qual se meteu a mídia.
A questão relevante é a seguinte: há uma crise na saúde pública prestes a explodir, colocando em risco a vida de centenas de milhares de doentes pobres, que poderão morrer por falta de atendimento. Essa é a questão básica -como impedir esse massacre-, perante à qual todas as demais são secundárias.
Se o imposto que vai resolver a situação é bom ou ruim, é outro departamento, é outra conversa. Se não for assim, que se desista de vez de construir uma nação solidária e moderna e vá se exercitar a racionalidade numa ilha qualquer do Caribe.
Resolvida a questão central, passa-se para a questão secundária: como financiar a saúde com um imposto menos ruim do que a CPMF? Aí caberia ao governo definir um prazo relativamente curto para substituir a CPMF por um imposto mais razoável.
A questão é que, a pretexto de se criticar a CPMF, a maioria da mídia simplesmente se esqueceu do essencial: as vidas de centenas de milhares de brasileiros.
PT
A reação do PT contra a CPMF foi comandada por duas pessoas. Uma, o deputado-médico Arlindo Chinaglia -o que não surpreende, com o juramento de Hipócrates e tudo. Outro, o próprio Lula -uma figura belíssima, que se amesquinhou com a política. A lógica de ambos provavelmente é a de que uma crise na saúde poderia ajudar o partido nas próximas eleições. Morte de doente na fila é prato cheio em campanhas eleitorais. Sorte do PT poder ainda contar em suas fileiras com pessoas da dignidade do deputado Eduardo Jorge.

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