São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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O deus do teatro

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Teatro Oficina havia sido fisicamente destruído. Ele se reergueu com grande beleza, num espaço certamente exíguo, mas abrindo-se para a paisagem da cidade através de uma imensa vidraça que o aparenta a um ateliê de pintura ou escultura. Isto se fez graças à obstinação do seu supremo gênio tutelar, José Celso Martinez Corrêa.
"As Bacantes" são uma obra que celebra Dioniso, deus da embriaguez, do delírio sagrado, dos transes, dos mistérios iniciatórios, do furor que inspira, das danças arrebatadas, dos cantos hipnóticos e, sobretudo, do teatro. A peça de Eurípedes mergulha nas origens místicas das artes cênicas. Ela trata daquilo que fundamenta sua própria possibilidade de ser. Ela proclama, inevitável, o triunfo do teatro. Peça que evoca o próprio Oficina ressuscitado. E como não pensar, diante das aventuras desse Deus perseguido, quase mártir, que só conseguiu impor seu culto por meio de combates sem tréguas, na figura do diretor José Celso Martinez Corrêa?
Dizem os especialistas que "As Bacantes" de Eurípedes talvez tenha sido a obra teatral que mais a Antiguidade grega admirou. Entretanto, já nos habituamos: sob o título de um grande clássico, os nossos teatros sempre oferecem outra coisa. Quando Cacá Rosset monta Molière ou Jarry, é o mesmo cirquinho que não muda. Se Paulo Autran representa Lear, trata-se de uma adaptação de Shakespeare para secundaristas desprevenidos. Ao pôr em cartaz "As Bacantes" de Eurípedes, o Teatro Oficina nos dá apenas José Celso Martinez Corrêa.
Nem sempre foi assim. Num passado remoto, "O Rei da Vela" ressurgia por obra do mesmo diretor numa montagem atordoante. Ela brotava de um texto energizado por uma leitura propriamente criadora, cujo impacto hoje não se pode imaginar. Um elenco fenomenal, movido por uma espécie de fúria cômica, em invenções cênicas que pareciam inesgotáveis, investia a peça de Oswald de Andrade de uma força transgressiva, muito poderosa e necessária em época de censuras e repressões. O público, surpreso, contagiava-se e vibrava numa intensidade que parecia inteiramente nova. Fui vê-la várias vezes, e guardo ainda, na lembrança, a sensação de felicidade que me habitava ao sair do teatro.
Mudou o Natal, ou mudei eu? Ambos, certamente. Creio, no entanto, ter conservado uma disponibilidade de bom público, capaz ainda de entusiasmos fortes. Mas como aderir a isto que o Teatro Oficina está apresentando agora? Um texto "atualizado", que perdeu a força original; uma montagem interminável que se repete sem cuidado, num tom constrangedor de tão amadorístico; atores que devem cantar, dançar e representar e que não sabem fazer nada disso. A música, quando não é uma colagem que se quer esperta, misturando Bidu Sayão e os Mamonas Assassinas, isto é, quando se torna cântico, é pobre, casando-se mal com as palavras.
Em verdade, o Teatro Oficina parece não querer mudar. Ele vai buscar uma certa marca registrada no seu passado, feita de irreverência e de escândalo. Mas não é possível requentar a vibração de outrora. E, sobretudo, não é possível substituir um trabalho efetivamente teatral pela intenção do escândalo e do desbunde. O escândalo, hoje em dia, não está fácil de se conseguir, e o desbunde é muito insuficiente. Não será pela insistência na nudez, na exibição das partes genitais e dos traseiros de si próprio e de seus atores, por despir um espectador escolhido (ao acaso?), que o diretor leva o espetáculo a adquirir interesse.
A repetição de velhas surpresas só revela o vazio e o desgaste. Quando a cabeça de Penteu é figurada por um pedaço de contrafilé, ou carne que o valha, vem a exclamação: ainda!? No final dos anos 60, era moda trazer para o palco restos de açougue -lembro-me de uma montagem de "É uma Pena Que Ela Seja uma P...", de Ford, no teatro São Pedro, onde se exibia um coração de boi na ponta de um punhal, e o próprio José Celso havia explorado esse filão fazendo os atores de "Roda Viva" comerem miúdos crus ao lado dos espectadores. Hoje -ou, em todo caso, nessas "Bacantes"- isto tem um efeito irrisório.
É claro que o diretor não é um ingênuo e tenta algumas alusões sabidas ao mito: Dioniso-Baco como deus-touro, a presença da água fecundadora na qual o deus mergulhara, o fogo de Semele, que presidiu ao seu nascimento. Busca também estabelecer laços que associem a peça à cultura brasileira, a qualquer preço, mesmo ao dos trocadilhos: assim Baco/Bachianas. Mas imperam, sobretudo, as referências contemporâneas. E aqui a cabotinagem do diretor interpela o público por meio de uma demagogia apoiada em valores libertários.
A peça de Eurípedes, tão intrincada e complexa, vira um jogo do bem contra o mal. Penteu é evidentemente o vilão: sóbrio, de terno e gravata, machista, encarnando a repressão. Dioniso é o herói politicamente correto: feminista, debochado, homossexual, senhor dos vinhos, do sexo, do teatro e dos maconheiros. O diretor não hesita nem sequer em utilizar os sem-terra, que surgem, rapidamente, a fim de dar uma leve cor social aos sentimentos. E, para que os poderes confraternizantes instalem-se na tribo do bem, o próprio Penteu é ressuscitado num happy ending. Não temos escolha: somos obrigados a aderir e pactuar, sob pena de nos revelarmos abomináveis reacionários.
Isto é um pouco nauseante: na falta de inspiração, a chantagem. Deste modo, a peça só conquista um público já conquistado de antemão, que vai lá para "participar" e se reconhecer, com boa consciência, numa avacalhação anêmica. Ao término do espetáculo, para que a jubilação fique garantida, entra uma escola de samba. Mas nem isso funciona: é evidente o esforço dos participantes para simular entusiasmo e alegria. Dioniso é um deus exigente. Ele não baixa se a invocação não for sincera.
O que sobra, em realidade, é um espetáculo de quase cinco horas, de um tédio infinito, no qual somos submetidos à tortura de assentos que conseguem a proeza de ser ainda mais desconfortáveis que os inventados por Lina Bo Bardi para o restaurante do Masp. Dessas horas compridas salvam-se dois momentos breves, em que a emoção parece levantar vôo graças a dois atores: quando Agave nos conta sua dor, e quando Penteu, luminoso, veste-se de mulher. Não posso dar aqui o nome desses intérpretes: o espetáculo não oferece nem programa, nem cartaz, em que se possa identificar a distribuição.
A auto-indulgência do diretor é imensa. Parece estar convencido de que aquilo que fizer, seja o que for, será forçosamente genial. Tudo fica, então, por conta desse gênio que troca assim a criação pela manha e a renovação pelo engodo. Na peça, ele é Tirésias, o alto, o sábio sacerdote, o confidente do Deus. Mas são múltiplas as formas com as quais o divino se reveste, e é frequente os deuses agirem enganando as nossas expectativas.
O velho Eurípedes, setuagenário ao escrever "As Bacantes", soube revigorar poderosamente sua invenção trágica. Wagner, no seu teatro, apresentava longuíssimos espetáculos, oferecia também maus assentos a seu público e se sabia gênio, mas sempre quis estar à altura de si próprio. No Oficina exige-se o reconhecimento admirativo, impondo, por meio de acenos convencionais, uma paródia de ressurreição.

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