São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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O mundo encantado de Mário Peixoto

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vamos brincar de colorido. Imaginemos que o Brasil amanhecesse sem a lama dos "Farias", sem os abatedouros "médicos" para "seniors citizens" pobres e os jornais estampassem: "Mário Peixoto voltou!".
Quem é Mário Peixoto? A exposição da Casa de Ruy Barbosa, no Rio, e a reedição de alguns de seus livros de prosa, poesia e roteiros cinematográficos podem começar a satisfazer esta curiosidade. Graças à paixão de Ayla e Saulo Pereira de Mello, à sensibilidade artística e humana de Walter Salles Jr., à elegância sóbria e competente da programação visual de Washington Lessa e ao patrocínio de instituições federais e municipais, Mário Peixoto poderá, de novo, ser visto e lido.
Mário Peixoto é o genial diretor de "Limite" e o autor do magnífico romance "O Inútil de Cada Um". Não sei o que pensa a crítica especializada, mas do ponto de vista do valor humano... que obras primas! "Limite", filmado em 1931, foi feito quando ele tinha de 22 para 23 anos, e "O Inútil de Cada Um" é o primeiro volume de uma série não publicada de mais quatro ou cinco livros, que ocupou-lhe, praticamente, o resto da vida. Destes dados biográficos mínimos, vou direto ao que interessa.
O que fascina em Mário Peixoto é a enormidade da reflexão sobre a condição humana. Em "Limite", vemos um homem e duas mulheres num barco, no meio do oceano. Tomados por lembranças e sofrimentos, naufragam todos. O tema é a contingência do sujeito. Somos joguetes de um acaso, cuja intriga ignoramos, embora sejamos obrigados a representá-la. Até aqui, pode-se pensar, nada além da conhecida revolta romântica da arte contra a vida. Mário, contudo, vai além. O limite que ele mostra é o da pequenez humana diante da grandiosidade da natureza! É neste contraste entre o homem e a natureza que suas imagens explodem.
Os inesquecíveis closes de Raul Schnoor, Olga Breno e Taciana Rei são mostrados contra o pano de fundo de árvores, rochedos, ventos, flores e, enfim, do mar, o verdadeiro herói de "Limite". De um lado, a tortura dos acanhados sentimentos, em sua estreita fixidez e provisoriedade, de outro, a força da vida natural, em sua permanência e mobilidade.
Mário Peixoto faz da natureza metáfora da liberdade inexistente em meio aos humanos. É como se ele dissesse, seguindo Brecht: "Sabemos que somos transitórios e depois de nós virá: nada digno de comentários". Mas, prosseguisse, completando: "...nada digno de comentários, porque 'depois de nós' a natureza continua. Nela o maravilhoso fluxo da vida multiplica-se, numa 'féerie' invisível a nossas almas cegas, retorcidas e devastadas pelas dores morais". Nela, como Isak Dinesen, ele quis buscar "uma lâmpada a seus pés e uma luz em seu caminho".
Em "O Inútil de Cada Um", as lembranças proustianas do narrador também são trazidas à consciência, mas sem a ambição de justificar ou explicar o que se passou. Suavemente, deslizamos da contingência para a impermanência. É uma ligeira mudança, e, no entanto, quanto esforço intelectual para desistir de entender! Sejamos mais claros. Certa vez, Isak Dinesen afirmou: "Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas".
Mas há dores e dores. Algumas são tão imensas que já não adianta contá-las. Neste momento, percebe-se que a dor não está no que esgarça o corpo ou a alma; está no sentido dado ao esgarçamento! É a narrativa do acontecimento que machuca e faz sofrer.
Quem leu, pelo menos, Freud e Ferenczi conhece este bê-a-bá da psicanálise. O mais difícil vem depois e aí começam os desacordos. Existem os que dizem: desista de entender, ou ainda, já que no sentido está a dor, bendigamos o inelutável "não-sentido". Somos seres da falta e da finitude, e o que sobra, quando perdemos as ilusões, é o espanto de nossa castração! Outros dizem: é verdade, não entenda! Mas isto é uma recomendação e não uma constatação; um gesto ativo e não um sinal de sujeição. Estes são os "mariopeixotianos". São os que dizem: não faça de sua história a marcha fúnebre de seus sonhos, continue sonhando! Não creia na idéia de ilusões perdidas, forje novas ilusões! Finja que entende as causas e razões do script, mas para ironizá-lo e rir dele; para modificá-lo, se necessário, ou abandoná-lo quando ele não mais servir. Só não esqueça que nada há a explicar, exceto que cada coisa tem sua hora, vez e lugar.
Fazer isto é seguir o conselho de Beckett: "A expressão 'encantamento da realidade' cheira a paradoxo. No entanto, quando o objeto é percebido como particular, único, e não apenas como pertencendo a uma família; quando ele surge, livre de toda noção geral, privado da caução que é a normalidade reasseguradora de uma causa, isolado e inexplicável à luz de nossa ignorância, então -mas só então- o objeto pode ser a fonte de um encantamento".
Em suma, fazer do evento um instantâneo, ao mesmo tempo presente e eterno, é fazer do mundo lugar do "encanto" e não do "espanto". Só então, a "solução do 'eu sofro'±", expressão literal de Mário Peixoto, salta à vista. A arrogância do eu ocidental está na raiz do sofrimento, da solidão, do desencanto ou do desamparo de que padecemos. Se renunciarmos à vã pretensão de sermos senhores do sentido, poderemos dizer, como Orlando, o narrador de "O Inútil..": "Só como eu estava ali... e com o coração relutante pesando-me -na perspectiva de aventurar-se de novo, aterrissando-me nesta incrível Terra". É este, talvez, o segredo da máxima tão recitada e tão pouco escutada: "Em tuas mãos entrego meu destino".
Uma vez só não é hábito. Vamos conceder algo à publicidade: vejam o filme e leiam o livro! Vocês, garanto, ficarão estupefatos com a beleza e a serenidade que podemos encontrar "no inútil encanto de cada um".

Email jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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