São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os descompassos de Euclides

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não foi só em sua obra máxima, o clássico "Os Sertões", que Euclides da Cunha (1866-1909) demonstrou ser um dos críticos mais argutos e implacáveis do Brasil.
Em sua correspondência quase completa, que a Edusp lança em livro em setembro, pode-se acompanhar passo a passo a relação de amor e ódio do atormentado escritor com o seu país.
Escrevendo a amigos e parentes, Euclides ora se declara "nativista", manifestando desprezo por tudo o que é estrangeiro, ora lamenta o destino de viver "no pior dos países possíveis e imagináveis". Queixas pessoais contra a falta de reconhecimento de seu valor intelectual misturam-se a análises impiedosas do provincianismo e do atraso do Brasil.
"Como é difícil estudar-se e pensar-se aqui!", desabafa Euclides numa carta a seu amigo Francisco de Escobar em abril de 1908. Ao falar da rivalidade com a Argentina em carta a Oliveira Lima (leia à pág. 5-5), lamenta "nossa pobreza orgulhosa, nossa inaptidão e nossa preguiça".
Em outros momentos, prevalece o amor pelos "sertões", pela natureza exuberante da Amazônia, pela vivacidade da cultura popular.
O livro, organizado pela professora de literatura Walnice Nogueira Galvão e pelo pesquisador "euclidiano" Oswaldo Galotti, consumiu sete anos de buscas em diversos arquivos privados e públicos do Brasil e um dos Estados Unidos (a Oliveira Lima Library, em Washington). O resultado desse esforço é um volume de mais de 500 páginas, com 398 cartas do autor, 107 delas inéditas.
"É a primeira reunião extensa de cartas de Euclides desde a edição de suas 'Obras Completas', em 1966", disse Walnice Galvão à Folha, por telefone, de Paris, onde ela prepara para a Unesco a edição crítica de "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa.
Para o crítico e historiador Roberto Ventura, que está escrevendo a biografia "Euclides", a ser publicada em 97 pela Companhia das Letras, o livro que a Edusp está lançando representa um "precioso avanço" para os estudos sobre a vida e a obra do escritor.
Embora elogie a abrangência e o rigor do livro organizado por Walnice e Galotti, Ventura aponta nele algumas lacunas. "Falta a maior parte das cartas de Euclides ao diplomata Gastão da Cunha, entre 1907 e 1909. Faltam oito cartas ao Barão do Rio Branco sobre a expedição ao Alto Purus (1905) e falta uma carta a Gustavo Massow, de junho de 1903".
Tanto Walnice Galvão como Roberto Ventura destacam as cartas inéditas como a principal atração do livro atual. De acordo com Walnice, "elas lançam novas luzes às relações de Euclides com a carreira política (algumas cartas fazem referência a um frustrado projeto de se candidatar a deputado) e com a vida profissional (que oscilava entre as letras e a engenharia)".
Para Ventura, o mais interessante do novo livro são as cartas escritas entre a Proclamação da República e a saída de Euclides do Exército (1895). "Graças a essas cartas, vemos que o contato de Euclides com Canudos (em 1897) foi o coroamento de um lento processo de desilusão com a República, e não a descoberta súbita de uma República autoritária e insensível."
Tragédia pessoal
Walnice Galvão destaca também as cartas que fazem alusão aos dramas pessoais do escritor. Na principal delas, inédita, escrita ao pai em 14 de fevereiro de 1906, Euclides desmente que tenha duvidado da fidelidade da mulher e reafirma a crença na "honestidade da que me completa a vida".
A carta, transcrita à pág. 5-5, ganha particular dramaticidade quando se sabe que, àquela altura, a mulher do escritor, Saninha, estava grávida em decorrência de uma relação com o jovem oficial Dilermando de Assis.
O bebê nasceria em julho. Euclides, que estivera em missão na Amazônia entre dezembro de 1904 e dezembro de 1905, refere-se à criança, em outras cartas, como um "filho prematuro". O bebê morreria com poucas semanas de vida, numa das passagens mais obscuras da biografia do escritor.
Em 15 de agosto de 1909, Euclides foi morto a tiros por Dilermando de Assis, a quem procurou armado de uma pistola, disposto a "lavar a honra em sangue".
Toda essa tragédia, entretanto, só pode ser acompanhada nas entrelinhas das cartas, ou até na ausência delas (não são poucas as queixas de Euclides, em sua correspondência amazônica, sobre a falta de notícias da mulher).
Mais abundantes são as referências ao estado de saúde do escritor. É impressionante a frequência com que ele fala de suas doenças. As duas principais são a tuberculose, aparentemente contraída na juventude, e a malária, contraída na viagem ao Alto Purus.
Em suas últimas cartas, Euclides fala muito sobre o agravamento da tuberculose, que levou um médico a recomendar-lhe uma temporada na Ilha da Madeira. Para Roberto Ventura, a saúde do escritor era tão crítica que, mesmo que ele não fosse assassinado, provavelmente morreria logo. Mais cautelosa, Walnice Galvão prefere desconfiar do que diz o missivista. "É possível que haja exagero no alarmismo de Euclides. Ele tinha verdadeira obsessão por doenças."
Intrigas acadêmicas
Não menos interessante é a parte da correspondência que trata da vida intelectual e literária. Há numerosas cartas em que Euclides trata de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Além dos tradicionais pedidos de votos aos acadêmicos, há referências à correlação de forças entre os votantes, definições de estratégias, críticas aos adversários etc.
Depois de eleito, em 1903, o escritor torna-se "cabo eleitoral" de seus amigos, entre eles o poeta Vicente de Carvalho.
Mais surpreendente é o desprezo ressentido com que Euclides ataca o filósofo Farias Brito, que ficou em primeiro lugar, à sua frente, no concurso que ambos prestaram para professor de lógica do Colégio Pedro 2º (Euclides acabaria ficando com o cargo por influência política). Sem nomear o concorrente, refere-se a ele como "um cearense que há 25 anos escreve uma interminável 'Finalidade do Mundo', que ainda ninguém leu".
A relação de Euclides com a filosofia, aliás, é curiosa. Numa carta de 1909 a Oliveira Lima, escorraça de um só golpe Kant ("é um Aristóteles estragado"), Comte ("agitador de idéias preconcebidas") e Spinoza ("que arranjou artes de ser doido com regra e método").
Outras saborosas idiossincrasias do escritor são a sua aversão ao automóvel e a oposição à reforma ortográfica concebida pela ABL em 1907, abolindo o "k" e o "y".
"Como poderei eu, rude engenheiro, entender o 'quilômetro' sem o 'k', o empertigado 'k', com as duas pernas de infatigável caminhante, a dominar distâncias?", pergunta Euclides, mostrando que, mesmo quando pensava na régua e no compasso, era acima de tudo um magnífico escritor.

Texto Anterior: A lógica destrutiva
Próximo Texto: Biografia será lançada em 1997
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.