São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 1996
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'Bacantes' volta com 'Caetano' anônimo

SÉRGIO DÁVILA
EDITOR DA ILUSTRADA

O "Caetano Veloso" paulistano é historiador, tem 34 anos, barba espessa e se chama Luiz Humberto. Foi ele o "estraçalhado" na volta de "As Bacantes" a São Paulo, na última sexta-feira.
O espetáculo, baseado em peça homônima de Eurípides e dirigido por José Celso Martinez Corrêa, ganhou fama extra no fim-de-semana retrasado, durante o Rio Cena Festival, quando deixou o músico Caetano Veloso nu no palco.
Em determinada cena, as atrizes que interpretam as bacantes tiraram o compositor baiano da platéia e o despiram no meio do palco. A volta da peça a São Paulo tinha essa expectativa: quem seria o próximo Caetano, quem seria "estraçalhado", definição de Zé Celso para o ato, dessa vez?
"As Bacantes", cujo enredo atualiza a chegada do deus Dionísio a sua cidade, exige a participação do público. Mais do que a peça, porém, é o próprio Zé Celso quem exige.
Fator Caetano
Às 21h35, começa o espetáculo, com cantoria. Terminará às 2h24, quase cinco horas depois. A casa tem um terço da lotação -o "fator Caetano" não foi tão forte.
A audiência se divide entre amigos, incautos e os que já sabem do que se trata e pensam: "Sou eu o próximo Caetano?" Entre estes, o clima é de nervosismo.
Nervosismo que vai contaminar os outros também, à medida que a peça avança -são cinco horas até o final. Às 22h, uma renda que separa a platéia do palco é retirada. Muxoxo ("Será agora?").
Não é. Uma menina comenta: "Parece macumba!". Ela não sabe, mas seu marido será o "Caetano" da noite. Na primeira intervenção exigida do público, primeira de uma série imensa, de uma peça afinal "interativa", deve-se cantar "Mamãe Eu Quero".
"Forte!", manda Zé Celso. "Forte!". Nem tudo mundo obedece. "Não quer?", ele pergunta. "Não quer", resigna-se, logo depois. No palco, há trechos de "Vira-Vira", dos Mamonas Assassinas, e as bacantes chegam mesmo a improvisar a dança da garrafa.
Na platéia, Zé Celso e Marcelo Drummond, ator principal, pintam de alvaiade rostos distraídos. Contra alguns, o diretor prensa seu corpo para fazer estourar bexigas que traz à guisa de bóia.
Um garçom-ator serve uvas mergulhadas em vinho. Alleyona Cavalli, a atriz principal, chama uma ruiva para dançar. Zé Celso puxa um rapaz. Enquanto diz "Eu escorracei todas as mulheres", Drummond separa um casal. São 23h, a coisa começa a esquentar.
Boné roubado
Zé Celso asperge vinho na cara do público. "'El Dorado'!", diz. "Eu preciso que digam 'El Dorado'. Evoé! Zeus! Gritem! Gritem!." Um boné é roubado.
Casais mais experientes levam vinho de casa, marmita, sanduíche. Como o medo de avião em viagens muito longas, porém, o nervosismo começa a arrefecer. São cinco horas de peça.
Então, o ex-garçom aparece como cupido e "flecha" um casal. As bacantes avançam sobre a dupla aos beijos, amassos. São puxados a dançar rumba.
Em volta, acontece algo sintomático. A audiência desenvolve táticas para não ser escolhida para as participações. Se o ator olha fixo, não corresponder, desviar o olhar, dá certo. Se a cena interativa ocorre logo à frente, virar para o outro lado do espetáculo e fingir interesse também funciona.
Um sinal, um aviso ("primeiro round, voltamos em 15 minutos") e o comunicado ("no palco, estamos vendendo conhaque, vinho, água e sanduíche natural").
Casal amarrado
E recomeça. Mais soltos (será o vinho?), já há os que participam cantando, jogando folhas. Um casal é amarrado. Aí, o primeiro momento Caetano: as bacantes pegam dois rapazes e uma moça e literalmente dão de mamar.
O primeiro rapaz se entrega à tarefa furiosamente. O segundo segue mais maternal. A moça reluta, recua, olha bem -e mama (a bacante em questão era Patrícia Winceski, a mesma que amamentou o músico baiano no Rio; a amamentada prefere não se identificar).
Então, acontece. À 0h15, as bacantes oferecem a fantasia de bumba-meu-boi a Luiz Humberto. Hesitante, ele aceita e é puxado ao meio do palco para dançar. Quando vê, está cercado.
É derrubado no chão, abatido pelas bacantes. Começa a ser despido. "Ele deu um suspiro, não sei se de relaxamento ou de tensão", diria sua mulher, depois. Seus óculos voam longe, ele já está só de cueca. Pronto, agora sim, completamente nu, de braços abertos. A banda toca enfurecida.
O centro da trama se desloca para outro lugar e o corpo fica lá, largado. Aos poucos, o novo Caetano começa a se vestir resignado. Olha a cueca, abandonada no meio do palco, onde ficará até o final do segundo ato. Desiste dela. Veste a calça, as botas, a malha. Procura os óculos, que lhe são entregues.
"Todo mundo tem seu dia de Caetano", afirmaria ele no final. Pronto. São Paulo já tem o seu.
O terceiro e último ato é o do relaxo. Parte porque o que todos esperavam (temiam?) já aconteceu. Parte porque, afinal, são cinco horas de peça.
Última cena: com seu cajado, Zé Celso aponta pés do público que ele quer descalços (os pés obedecem). Então, são convidados a pisar um tacho com uvas. Drummond diz: "Como vocês viram, o teatro é a casa do caralho".
E acaba.

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