São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 1996
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Peça "Rent" é o anti-"Hair" dos anos 90

EVELYN MCDONNELL
DO "VILLAGE VOICE"

Musical criado por Jonathan Larson fala a e sobre um público que não se lembra onde estava quando o presidente Kennedy foi assassinado

A ópera-rock "Rent", em cartaz atualmente em Nova York, aquela sobre a qual se diz que trouxe o teatro musical para os anos 90, não é sobre: cavanhaques, tênis Airwalk, "piercings", MTV, pós-modernismo, o Cyber Cafe, tatuagens, roupa de tamanho extragrande, trip-hop, patins in-line, alt-qualquer coisa, camisetas com slogans dos anos 70, palavra falada, ironia e Lollapalooza.
Segue-se uma lista selecionada das coisas saudadas em "La Vie Boheme", a canção-tema de "Rent": nada de pensões, odiar convenções e pretensões, opção, "The Village Voice", a necessidade de se expressar, arroz com feijão e queijo, objetos fálicos, Maya Angelou, Lenny Bruce, substâncias cancerígenas, Pee-wee Herman, os Sex Pistols, nenhuma vergonha, apatia, entropia e sodomia.
Na condição de representante do tipo de artista ainda não reconhecido e morador de East Village que o espetáculo retrata, posso garantir a meus vizinhos e pares que "Rent" não nos trai.
Não é nenhum drama de exploração grunge que vende turismo subculturalista nem fruto da cabeça de nenhum publicitário. "Rent" é indiscutivelmente a primeira grande produção teatral que fala a e sobre uma audiência que não se lembra onde estava quando JFK foi assassinado. Também é um musical brilhante, um manifesto político, um fenômeno comercial, uma tragédia e um triunfo.
"Rent" é sobre a dificuldade de se viver uma vida dedicada aos ideais da expressão artística e da liberdade pessoal enquanto nossos amigos morrem, a polícia espanca pessoas que vivem nas ruas, você não tem como pagar o aluguel e vive a tentação de se vender, como fez a geração anterior à nossa.
Frank Rich elogiou "Rent", qualificando-a de uma resposta à mentalidade dos seguidores de Pat Buchanan (jornalista conservador, um dos líderes do Partido Republicano), mas mais do que isso é uma revolta contra o yuppismo. Não vá na onda da mídia: "Rent" talvez seja o anti-"Hair" dos anos 90.
Embora a peça seja sob muitos aspectos sombria, com seus personagens lutando contra a mentalidade do fim-justifica-os-meios deste final de milênio, "Rent" é acima de tudo uma celebração: do amor, da vida e da criação.
Sua vitória é uma vitória do espírito -literalmente, quando a alma da dançarina Mimi é enviada de volta pelo túnel da morte para ouvir a canção de seu amante.
Infelizmente, seu criador, Jonathan Larson, não teve essa segunda chance: morreu de um aneurisma da aorta na noite anterior à pré-estréia do espetáculo, no Theatre Workshop de Nova York.
Mas, como o personagem Angel, um travesti percussionista cuja "joie de vivre" continua a ser o espírito que guia a peça, mesmo após sua morte, a morte de Larson confere a "Rent" uma atualidade que faz dela não apenas uma fábula, mas um testamento.
Larson já está virando lenda. E com uma parte tão grande da filosofia do "aproveite sua vida hoje, já que o amanhã é tão incerto" da peça fundamentada em considerações sobre a mortalidade (metade dos personagens principais é soropositiva ou tem Aids), é impossível não enxergar seu autor como uma espécie de oráculo -impossível deixar de sentir na peça a presença do gênio hoje ausente do mundo.
"Sua morte foi uma força galvanizadora, um momento de verdade", diz Anthony Rapp, que faz o papel de Mark Cohen, o cineasta que narra boa parte da peça. "É como se ele soubesse do que estava falando quando disse 'não existe outro dia senão hoje'."
Os artistas boêmios que são os personagens de "Rent" criam sua própria família, interligada por sonhos, doença, pobreza e morte. Seus parentes de sangue só aparecem sob a forma de pais que não os compreendem e que ou estão do outro lado do telefone celular ou deixam recados na secretária.
Larson viu em East Village um modelo de uma sociedade melhor e criou uma versão operacional dela no elenco de "Rent".
Os integrantes do elenco costumam se dar as mãos e se abraçar com frequência, e dois deles começaram a namorar. Quando os produtores anunciaram que a peça iria para o Nederlander Theater, na Broadway, os atores reuniram seus empresários para fazer uma negociação conjunta.
É claro que a morte de Larson resultou numa união ainda maior do elenco. Larson, de 35 anos, vinha sentindo dores no peito havia alguns dias, mas tinha ido a dois hospitais sem nada constatar.
Assim, quando morreu, sozinho em seu apartamento, no dia 25 de janeiro -horas depois do último ensaio geral de "Rent"-, a comoção foi geral. O elenco e a equipe de produção se reuniram no teatro no dia seguinte.
Alguns deles mal conheciam Larson, que não costumava fazer sua presença ser sentida nos ensaios. Outros o conheciam bem. A pré-estréia daquela noite foi cancelada e, em vez disso, o elenco apresentou a peça para uma platéia composta só de amigos e familiares de Larson. "Foi a coisa mais difícil que já fiz na vida", diz o ator Jesse L. Martin.
Alguns críticos reclamam da peça, dizendo que é confusa, e ela com certeza está longe de ser perfeita. Mas até que ponto as pessoas deveriam ter liberdade de mudar a criação de outra, mesmo que sejam suas amigas e colaboradoras? Para mim, a profusão de personagens e atividades de "Rent" só intensifica seu encanto espetacular.
A direção de Michael Greif é digna de confiança. Consta que, antes da revisão dele e de Thomson, o roteiro era totalmente confuso. "Uma das últimas coisas que eu pude dizer a Jonathan foi que achei que ele tinha sorte por ser Michael quem estava dirigindo a peça", diz o ator Timothy Britten Parker.
"Eu diria que Jonathan tinha o coração, e ele deu à peça um pedaço de sua alma", diz o ator Fredi Walker. "Enquanto isso, Michael teve a visão necessária para moldá-la, transformando-a numa coisa inteligível e aproveitável pelos outros."
Qualificar "Rent" de um musical da Geração X, como fizeram alguns críticos, não retrata o que essa peça realmente é. Em lugar de ser uma caricatura exploradora dos tipos artísticos que transformaram East Village numa meca, "Rent" valida as vidas vividas em busca da realização de sonhos artísticos e prazeres terrenos.
O cenário específico pode estar aqui e agora, mas a mensagem de "Rent" é muito mais abrangente. "Não se pode pegar um espetáculo e dizer que ele fala por toda uma geração", diz o ator Adam Pascal.
"Esta peça representa boa parte do que está acontecendo. Não fala por uma geração, fala a uma geração. E fala também a todas as outras pessoas, porque é uma história genuína e comovente, não um comercial qualquer de Pepsi."

Tradução de Clara Allain

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