São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 1996
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Uma proposta deveras radical

ERASMO GARCIA MENDES

Uma boa parte da crítica que o professor F. Reinach fez a proclamados cartelismo e corporativismo existentes nas universidades públicas ("USP: uma proposta radical", Folha, 24/6) é, num certo sentido, procedente. Mas, se "c'est le ton qui fait la chanson" (é o tom que faz a canção), o tom que ressuma da investida do jovem bioquímico é desagradável, soa elitista e intolerante e está em dissonância com o humanismo que deve também embasar o ideal universitário.
Ao propor uma solução radical, terá faltado ao professor Reinach uma visão das conjunturas socioeconômicas, políticas, culturais em que a universidade pública brasileira surgiu e vem se desenvolvendo, geradoras dos defeitos por ele apontados nos processos de admissão de docentes e servidores técnico-administrativos, com falta de exação no cumprimento de seus deveres.
Na verdade, a situação vem se modificando visivelmente. No tocante aos docentes, por exemplo, antes da reforma universitária, a admissão se fazia ao talante do catedrático, que podia, se quisesse, constituir no seu departamento um "entourage" que lhe fosse inteiramente submisso, pois seus componentes eram demissíveis "ad nutum".
Hoje, a admissão se faz por concurso de provas e títulos, e os candidatos devem possuir grau de doutor. Antes da reforma, a efetivação na carreira só sobreveio com a criação do cargo de professor-adjunto. Hoje ela se consuma após um período probatório em que o novo docente exiba produtividade.
E a cobrança continua, não sendo raros os casos em que, por improdutivos, docentes vêm perdendo o RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa) e, relegados ao tempo parcial, acabam eventualmente procurando outros meios de vida menos solicitantes.
É certo, porém, que, com o desaparecimento do catedrático, nem por isso a situação se tornou ideal, pois nos departamentos podem surgir "panelinhas" de docentes, constituindo sério óbice à admissão de novos docentes e/ou progresso na carreira que encetam, se permanecerem fora delas.
Há, não se negue, ponderáveis resíduos da situação pré-reforma em termos de docentes e servidores técnico-administrativos supostamente incompetentes ou indolentes. Mas mesmo esses não devem ser removidos a ferro e fogo, pois isso certamente causaria convulsão social de consequências incalculáveis.
É preciso lembrar que, nas sociedades humanas tropicais, a teoria de Arrhenius parece funcionar às avessas, quanto maior a temperatura tanto menos veloz o ritmo de atividade.
Desse modo, embora não se deva agir como o Gattopardo de Lampedusa, que admitia que tudo poderia mudar desde que permanecesse como estava, deve-se proceder gradualmente na extinção dos incompetentes e indolentes, que ocorrerá inexoravelmente com a contínua elevação do nível da universidade, o que inegavelmente ocorre, sem recurso a medidas desumanas.
Assim, insinuar a aplicação de um "darwinismo selvagem" nas universidades públicas para acabar com acomodados e relapsos soa como opção por um fascismo na sua forma mais execrável, o nazismo.
A sugestão implícita na insinuação é a de um holocausto dos ineficientes no altar de uma pretendida moralização. Trata-se, provavelmente, de uma brincadeira de mau gosto do professor Reinach, um competente cientista na área em que atua, mas que enseja breve comentário sobre um discutível ponto da doutrina de Darwin.
A invocação de um darwinismo social para tentar justificar a desigualdade nas sociedades humanas se acentuou a partir de Spencer, misto de filósofo e biólogo, que com ele pretendeu explicar a estratificação da sociedade no sistema capitalista, em oposição à pregação igualitária do socialismo.
O próprio Darwin, porém, não é isento de culpa, pois, segundo Robert Kurz, em "A biologização do social" (Folha, "Mais", 7/7/96), teria recriminado o incipiente movimento sindical de sua época por solidariedade prejudicial ao processo de seleção natural, logo, sobrecarregando a sociedade com elementos inaptos à concorrência.
Ainda sobre a biologização do social (e sua contrapartida, a sociologização do biológico), há o clássico do historiador norueguês J. Elster "Ulysses and the Sirens" (Cambridge U. Press), que leio no momento.
Finalmente, ressalte-se que, embora fundamentalmente animais, somos dotados de racionalidade e senso moral; isso vem nos capacitando, no decurso do processo civilizatório, a crescentemente repudiar darwinismos selvagens na solução dos problemas sociais.

Erasmo G. Mendes, 81, é professor emérito do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo).

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