São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 1996
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Estúpidas idéias

OTAVIO FRIAS FILHO

O regime militar (1964-1985) está no centro de dois livros recém-publicados, livros díspares escritos por dois autores que não poderiam ser mais antípodas um em relação ao outro. Mas suas visões são de tal forma complementares que valeria a pena tentar aproximá-los para iluminar essa época estranha, ao mesmo tempo recente e remota.
Jarbas Passarinho foi o estadista mais completo produzido pelo regime. Coronel do Exército, leitor de Anatole France influenciado pelo lacerdismo e pela doutrina social da Igreja, anticomunista feroz, ele foi ministro de três governos da ditadura e quase o seu ideólogo. Assinou o AI-5, em 68, mandando "às favas os escrúpulos".
Com a democracia sua imagem suavizou-se, deram-lhe os títulos legítimos de político respeitável e coerente, sobreviveu incólume, até, a uma segunda estadia no inferno, o do ministério Collor, quando o establishment se engajou numa operação SOS, o impeachment uma experiência temerária demais para ser vivida. Publica agora suas memórias.
O outro livro é o novo romance de Marcelo Rubens Paiva, autor de um best seller com autenticidade literária, escritor de uma linha que se poderia chamar de "beat" brasileiro. Se a vida de Passarinho se entrelaça inevitavelmente com o regime militar pela carreira, a de Paiva é atraída ao passado pela família.
Seu pai, um deputado liberal com idéias de esquerda, tornou-se a mais célebre vítima dos "desaparecimentos" praticados pelo regime. Sua irmã, Veroca, foi a principal dirigente estudantil no "anônimo" movimento de 77. A família era proprietária no Vale do Ribeira, a região mais pobre de São Paulo, quando Lamarca montou um foco de guerrilha lá.
Embora o livro de Passarinho sejam memórias no estilo tradicional, em que o autor apresenta os argumentos sobre por que agiu de tal maneira, enquanto o de Paiva condensa lembranças, reportagem e ficção, estão ambos voltados para o mesmo ponto, tratam às vezes dos mesmos episódios. Irônico e melancólico, o confronto entre eles ensina.
Difícil negar várias coisas: que a industrialização se completou, que a economia cresceu, que o país se tornou urbano, que as distorções sociais se agravaram, que a tortura é uma mancha indelével, que ditadura nunca mais etc. Mas o que ressalta nos dois textos é o vazio daquele imenso confronto, que seria frívolo não fosse pelas mortes.
As palavras de ordem e as ordens do dia, as fantasias de lado a lado, reflexos das gigantescas fantasias armadas entre o Bem e Mal no mundo, comunismo versus anticomunismo, tudo isso foi para a lata de lixo tanto quanto o DKW ou a calça boca-de-sino. Exceto pelo sofrimento, era como se todo mundo brincasse de mocinho e bandido.
Aquela foi provavelmente a última ditadura. Aquele Brasil provinciano, familial, não existe mais. Acusados de céticos, não fazemos mais que a obrigação ao desconfiar de certezas internacionais, não ligar para a política ou ter em mente que são pouquíssimas as coisas que justificam matar ou morrer -e que nossas estúpidas idéias não estão entre elas.

"Um Híbrido Fértil", Jarbas Passarinho, Expressão e Cultura, 627 págs.
"Não És Tu, Brasil", Marcelo Rubens Paiva, Mandarim, 294 págs.

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