São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 1996
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Segurança e igualdade de direitos

DALMO DE ABREU DALLARI

A associação de moradores de uma região do município de São Paulo pretende apresentar proposta pela qual ela complementaria salários de policiais que trabalhassem naquela parte da cidade e pagaria o conserto de algumas viaturas, acenando, ainda, com a hipótese de doação de algum equipamento à polícia.
Em troca, pretende que seja mais intenso o policiamento ostensivo em sua respectiva região, falando também em reunir numa cooperativa, que é uma entidade privada, os policiais que ali operassem.
Em princípio, parece saudável que um grupo de cidadãos se disponha a colaborar com as autoridades públicas numa atividade de extrema relevância social. Aparentemente, isso que está sendo proposto já vem acontecendo em inúmeros municípios, com resultados muito positivos e sem que se tenha questionado a validade da iniciativa. Entretanto, do modo como foi anunciada a proposta, existem boas razões para que ela seja considerada antiética, ilegal e inconveniente.
Antes de tudo, para desfazer confusões, é preciso deixar claro que, em todos os casos conhecidos, um certo número de moradores de determinado município fez doações ao organismo policial para que todo o município tivesse melhor policiamento. Além disso, não há caso de município em que um grupo de policiais tenha privilégios salariais graças à complementação feita por particulares.
O que tem acontecido, até com certa frequência, é a colaboração de algumas pessoas ou empresas para melhorar o equipamento policial, sem receber qualquer contrapartida que configure privilégio e sem pretender interferência alguma na organização e nas ações da polícia.
Do ponto de vista ético, a proposta em questão demonstra falta de solidariedade e de espírito público. Valendo-se de sua melhor condição econômica, algumas pessoas querem comprar privilégios usando o dispositivo policial, que é pago por toda a população, para seu benefício particular, mediante o pagamento de uma propina oficializada. Nenhum espírito de fraternidade, nenhuma solidariedade com as pessoas mais pobres que lhes prestam serviços, nenhum espírito público.
Para não ir muito longe, bastaria que os autores da proposta tivessem olhos para ver que a faxineira de sua casa, o modesto empregado da padaria ou do supermercado, o entregador de gás, o auxiliar de manutenção de seu escritório ou de sua fábrica, o quase invisível trabalhador braçal que cuida da canalização de águas e esgotos, são todos seus valiosos colaboradores que moram em bairros mais modestos.
E são, igualmente, seres humanos, com necessidade igual, ou talvez ainda maior, de segurança para seus pequenos patrimônios e suas famílias. Teria alto valor moral o gesto dos que dispõem de melhores condições econômicas se eles contribuíssem para melhorar o equipamento policial de sua região sem exigir tratamento privilegiado e se, além disso, oferecessem alguma forma de colaboração para que todos os munícipes desfrutassem de mais segurança.
Do ponto de vista legal, a polícia é serviço público essencial, a que todos os cidadãos têm igual direito. Esse serviço é pago com o dinheiro dos impostos, que, em princípio, todos deveriam pagar, na medida estabelecida em lei, mas que, como regra, a população mais pobre paga com mais exatidão, mesmo porque nem tem como sonegar.
Se o serviço é público, deve ser igual para todos, e seria contra a igualdade de direitos, assegurada pela Constituição, o oferecimento de serviço público de melhor qualidade para uma parte dos munícipes, mesmo que estes quisessem fazer um pagamento complementar. A par disso, seria ilegal, injusto e inconveniente remunerar melhor os policiais que trabalhassem em determinados bairros da cidade só por se tratar de uma região de moradores mais ricos.
Por último, quanto ao inconveniente de tirar o controle do Estado sobre uma parte dos organismos de segurança, como decorre da proposta de semiprivatização da polícia, é fácil imaginar o que pode acontecer se houver grupos armados fora do estrito controle do poder público, numa sociedade em que a ética não fala muito alto.
Toda a população necessita da polícia, como serviço público essencial. Se muitos reconhecerem isso, e cada um, na medida de suas possibilidades e na forma que puder, colaborar com o poder público, é possível ter uma eficiente e democrática organização policial, garantindo segurança igual para todos.

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