São Paulo, sexta-feira, 19 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rever "O Ébrio" é ajustar contas com o passado

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O filme nacional "O Ébrio", com Vicente Celestino, estreava há 50 anos e está sendo reapresentado nesta sexta-feira no Museu da Imagem e do Som. Faz sentido ver uma coisa dessas?
Creio que sim, por dois motivos. O primeiro é que, mesmo sendo ruim, esse filme faz parte da cultura brasileira. É espantoso o número de referências culturais que nós, brasileiros, "temos" e ao mesmo tempo "não temos". Há todo um folclore musical, imagético, literário, que faz parte da nossa memória sem que nunca tenhamos tido contato com a fonte.
Não me refiro ao folclore popular, o "verdadeiro" folclore, mas a um "folclore" de origem recente, já permeado pela cultura de massa, e que se torna quase ancestral e mítico em função da ignorância que temos de suas origens.
Um exemplo: todo mundo se lembra da imagem do "Jeca Tatu", o caipira inerme de barbichinha, picando fumo e contemplando a imensa estagnação do país. A imagem persiste, mas não sua fonte. A saber, um artigo de Monteiro Lobato nos anos 20. Quem leu esse artigo? Ninguém.
Acredito que todo argentino já tenha visto na vida um filme de Carlos Gardel. Poucos de nós já viram um filme de Vicente Celestino. Não que Vicente Celestino seja comparável a Gardel; penso apenas no valor de memória, no poder de referência cultural, não no significado estético.
Como todos sabem, o Brasil é um país "jovem". Ou seja, os ídolos culturais de nossos avós têm aqui uma presença muito mais fraca do que em um país demograficamente mais estável como a Argentina.
O resultado é que há alguns ecos culturais, como a canção "o Ébrio", como "Chão de Estrelas", de Silvio Caldas, como aquelas velhas marchinhas de carnaval, "ó jardineira" etc., que ao mesmo tempo são desconhecidas e resistem ao esquecimento. Só por espírito de pesquisador é que podemos travar contato com tudo isso.
O que estamos perdendo, se nunca soubermos o que foram? Esteticamente, estaremos perdendo muito pouco. Mas culturalmente, afinal, estamos perdendo muito, à medida que essas coisas fazem parte de nossa identidade nacional.
Nada mais suspeito do que esse termo de identidade nacional. Se alguma coisa caracteriza a cultura brasileira, é precisamente o pouco que ligamos para elas. País querendo sempre ser moderno, formado sempre em direção ao "futuro", o Brasil tem mais prazer na negação do que na continuidade, no moderno do que no antigo.
E aí entramos no segundo motivo para ver o filme de Vicente Celestino. Desconfio que, por muito tempo, coisas como Vicente Celestino foram apenas motivo de paródia no Brasil. Atitude justa, aliás. Nada se presta tanto a paródia quanto um filme desses.
Só que, atualmente, minha impressão é que o espírito de paródia, o espírito oswaldiano, desgastou-se um pouco. Rir de Vicente Celestino é tão anacrônico quanto admirar Vicente Celestino. Não se trata mais de um padrão de gosto dominante, contra o qual valeria, como em 22, destruir pelo riso, pelo sarcasmo, pela gozação.
Será que Caetano Veloso estava mesmo gozando da música de Teixeirinha, quando cantou todo aquele drama do coração materno no disco da Tropicália? Caetano cantava "a sério", em um ambiente em que tudo já continha dentro de si a imagem da gozação. Sua maior ironia era a seriedade, em um espírito de colagem modernista, em que o máximo de realidade produz o máximo de estranhamento.
O estranhamento, contudo, não precisa mais ser produzido artificialmente, em um empenho crítico e militante, quando vemos "O Ébrio" hoje em dia. Dá para perceber, mais do que antes, imagino, o quanto esse filme por exemplo tinha desde o início os elementos de uma autoparódia.
Não se trata de um drama realista envelhecido, mas de alguma coisa que explorara também o lado ridículo dos próprios temas que levanta. Nossos avós, quem sabe, levaram-no a sério, ou detestaram o filme, porque o julgavam pretensamente sério. A partir daí a ironia fazia sentido.
Hoje não mais. O que não significa admirá-lo, por certo. Mas significa estar em uma relação mais adulta com o que todo esse "lixão" representou. O principal seria, imagino, rever "O Ébrio" e tantas outras coisas desse gênero não como objetos pavorosamente engraçados, mas como problemas.
Esses produtos antiquados ajudaram e prejudicaram a "formação de nossa cultura". É exatamente pela rejeição desses modelos meio lusitanos ainda -"O Ébrio" tem algo de filme português, a começar pelo sotaque dos atores- que conseguimos gerar alguma identidade.
Mas a rejeição pura e simples não impediu que esses modelos convencionais sobrevivessem subterraneamente na memória. Não os destruiu. Do mesmo modo, o passado social brasileiro, a condição de país dependente e arcaico, sobrevivem até hoje. Quanto mais se fala do "novo", do "moderno", da rejeição do "velho", mais se presta a este uma homenagem e um atestado de sua permanência.
Assistir a um filme como "O Ébrio", hoje em dia, significa tentar ir um pouco adiante nesse ajuste de contas com o passado; e talvez tentar também um ajuste de contas com o espírito, mais imaginário que real, mais encenado que concreto, de rejeição a esse mesmo passado.
Quem sabe? Deixar o sorriso irônico substituir-se por uma sensação de estranheza; não mais fazer com que o "kitsch" da história seja antropofagizado na paródia fácil, mas submetê-lo a uma diferente estratégia crítica. Estivemos em geral às voltas, desde 22 pelo menos, com uma espécie de sarcasmo sentimental diante da convenção. Não seria possível buscar outro caminho? Termino só com esta pergunta, porque a resposta eu não sei.

Texto Anterior: CLIPE
Próximo Texto: Parceiro de Allen se lança como diretor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.