São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Flagrante dos homens ridículos

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um livro disponível por um preço acessível nas livrarias espanholas ("150 Years of Photo Journalism", em dois volumes, material procedente da Hulton Deutsch Collection) me fez deter ante duas fotografias de Hitler.
Sua imagem foi vista já tantas vezes que na realidade é difícil que ela nos chame a atenção, é um ícone da maldade tão conhecido e reproduzido -tão consabido-, que há a tendência a não olhá-lo, a passar por cima, a identificá-lo muito rapidamente com seu significado e obviamente com seu nome, ah! Hitler. Pode-se dizer que é uma anomalia assumida, um excessivo déjà vu, tão familiar que não causa espanto nem escandaliza, poder-se-ia qualificar de uma anomalia normalizada.
Há centenas de imagens em que o sujeito aparece nas atitudes mais histriônicas e grotescas, com frequência como um energúmeno no meio de um discurso, fantasiado de soldado ou, mais ainda, fantasiado de si mesmo. É confundido com suas próprias paródias e caricaturas, sobretudo com a que fez Chaplin em "O Grande Ditador", e por tudo isto é de certo modo um ícone desativado e desprovido de seu verdadeiro horror, como pode sê-lo o do diabo em sua versão mais comum, com chifres e garras, tridente e rabo. Hoje quase mais ninguém leva a sério nem teme esta figura, nem sequer quando a vemos pintada por aqueles que nela acreditavam: antes convida à piedade ou ao riso.
Por isso, acho digno de nota que estas duas fotografias me tenham feito deter e ver Hitler quase como se não o conhecesse, como se fosse um personagem a quem ainda se está acostumando, da mesma maneira que deviam vê-lo os olhos que contemplaram a primeira foto no dia em que apareceu, 1935, muito antes da Segunda Guerra Mundial, até mesmo antes de nossa Guerra Civil, quando fazia somente dois anos que tinha chegado ao poder na Alemanha, ganhando democraticamente as eleições, que ele bem cuidou em seguida para que não voltassem a se repetir com limpeza.
Nesta foto -assim reza a legenda-, Hitler está passando em revista a guarda de honra antes de receber o novo embaixador espanhol no palácio presidencial. Não está vestido de maneira militar ou paramilitar, mas antes como um diplomata; está já preparado e pronto para a ocasião, e é de supor, portanto, que o embaixador espanhol ainda não tenha chegado.
Como é improvável que alguém se permitisse fazer o fuehrer esperar, não cabe imaginar um atraso de nosso compatriota -seria republicano-, mas antes que Hitler tenha disposto de alguns minutos de folga, ou seja, que podia estar desocupado, ao ponto de se incomodar em comprovar pessoalmente se a guarda de honra estava formada como devido e se tudo estava em ordem, uma pessoa muito seguidora do protocolo ou -talvez- a quem agradasse sobremaneira brincar com os soldados.
Fundamental -é o chocante- é que Hitler estivesse em trajes civis diante de 39 guardas com capacetes, botas de cano longo e armados. É mais baixo do que o mais baixo deles, ou assim parece, e esta primeira fileira poderia se converter, com um só movimento dos braços, em algo bem distinto, um pelotão de execução casualmente muito bem nutrido. O indivíduo que à esquerda os desafia não é por suposto um condenado, mas antes quem ditou sem descanso condenações, e, ainda que não esteja uniformizado, seu olhar altaneiro denota que tem o comando.
São olhos tão severos que se tornam ridículos, tão exagerados que parecem os de um impostor que finge e está representando o papel de inspetor da guarda neste instante. Ainda nos braços se denota algo deste fingimento: o direito caído, reto, com um simulacro de marcialidade, o esquerdo dobrado como se nesta mão portasse uma invisível vara. Mas os pés, Deus do céu, estes pés confusos, o passo titubeante o delata, e transforma a imagem inteira numa cena de vaudeville ou bufa, são os passos de um bêbado fazendo "esses" e se pensa no custoso que deve lhe ter sido dar o seguinte, que já não é apanhado pela foto, fazer avançar -arrastando-a, desenganchando-a- esta perna direita deixada para trás no flagrante.
Se isto fosse o fotograma de um filme, no lugar de Hitler só poderíamos colocar o próprio Chaplin ou Jerry Lewis ou Peter Sellers, o bufão ensimesmado e bêbado que se beneficia de um equívoco, ou de uma usurpação, ou do crédito outorgado à sua loucura, um fantoche, um néscio. Não é de se estranhar que fosse desprezado pelo Exército, na realidade parece inofensivo.
A segunda foto o mostra na apresentação do Volkswagen, em 1938, deleitado diante da miniatura. Em sua volta há outras nove figuras visíveis que parecem uma síntese da sociedade alemã, naquele momento já devota e militarizada. Pode-se ver o velho com traços camponeses e os jovens de boa família, vê-se o comerciante com o bigodinho imitador e o industrial que vai cobrindo sua calvície com o penteado de acentuada risca, talvez o funcionário que lhe mostre os segredos do veículo. O grau de submissão se nota em que eles nem sequer olham para Hitler e sim para o que ele está olhando: não o vêem, mas sim por meio de seus olhos.
O fuehrer sorri com uma expressão pueril beirando a imbecilidade, abobalhado diante do porta-malas que lhe abrem, que maravilha! Mas apesar da inocuidade da cena, a boca retraída e os cadavéricos pômulos provocam um calafrio, adivinha-se o homem irascível sob a aparência alegre, estes pômulos parecem ter autonomia.
É fácil falar depois que Inês está mortíssima, mas cabe a pergunta de como foi possível que nações inteiras -não foi somente uma- confiassem em semelhante indivíduo e o idolatrassem. Talvez tenha sido precisamente seu aspecto burlesco e risível que induzia a pensar que o poder em suas mãos era menos poder do que em outras mais imponentes.
Nada tão perigoso como o desprezo. Ficamos desarmados ante os que nos fazem rir ou nos inspiram algo de piedade zombeteira, aqueles com relação aos quais sentimos tanta superioridade, que julgamos não valer a pena entrar em confronto com eles nem nos rebaixar para fazer-lhes frente, da mesma ou parecida maneira com que antigamente os cavalheiros desdenhavam ou se proibiam bater-se em duelo com aqueles que não eram de sua condição, hierarquia ou grau. Mas, como todo mundo sabe, há tempos estes cavalheiros foram varridos da face da Terra pelos homens ridículos.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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