São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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As passagens brasileiras

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando chegou ao Brasil, em 1937, acompanhado de sua mulher, a francesa Jeanne Dupoix, e de seus dois filhos, Giuseppe Ungaretti já era considerado um dos mais importantes poetas italianos deste século, ao lado de Eugenio Motale, Salvatore Quasimodo e Umberto Saba. Havia publicado "Il Porto Sepolto" (1916) e "Sentimento del Tempo" (1933). Bastaram estas obras para que Ungaretti instaurasse um processo irreversível de renovação poética.
A sua vinda ao Brasil estava ligada à fundação da USP. Em 1936, viajou à Argentina, a convite do Pen Club. Na breve escala em Santos, Ungaretti veio a São Paulo e pronunciou duas conferências na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esse fato alteraria o rumo de sua vida.
Acatando sugestão do professor Francesco Piccolo, Antônio de Almeida Prado, então diretor da faculdade, convidou Ungaretti para lecionar literatura italiana. O poeta permaneceria aqui até 1942, quando os professores italianos, em função da guerra, foram chamados de volta à Itália.
O primeiro documento de sua chegada ao Brasil figura no poema "Monologhetto", no qual registra as imagens do Carnaval do Recife, em fevereiro de 37, na breve escala do navio Neptunia. Em São Paulo, fixou residência numa vila na alameda Santos, 1.149, casa 11.
Três aspectos devem ser sublinhados quanto a sua presença no Brasil. Os dois primeiros são de ordem intelectual: enquanto o desenraizamento paralisa o poeta, o magistério permite refletir sobre a corrente subterrânea que atravessa a lírica italiana de Petrarca (1304-1374) a Leopardi (1798- 1837). Aprofunda os estudos de métrica, descobre o barroco e as idéias do filósofo Vico (1668-1744).
O terceiro aspecto, biográfico, relaciona-se ao trágico episódio da perda do filho Antonietto, de nove anos, em 1939, vítima de uma apendicite mal curada. Antonietto está enterrado no Cemitério São Paulo, na quadra 13, túmulo 223.
O primeiro grupo de amigos foi constituído pelos alunos e os fundadores da revista "Clima": Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes. Este último fez a ponte entre Ungaretti e Oswald de Andrade, que protagonizou uma gafe histórica. Segundo Décio de Almeida Prado, ao serem apresentados, Oswald elogiou a poesia de Ungaretti e, enfático, começou a declamar alguns versos. Foi interrompido imediatamente pelo italiano: "Ma, non, queste non sono le mie poesie". Diante do pastiche, Ungaretti reagiu às gargalhadas. Estava selada a amizade.
Na sua partida, "Clima" homenageou o poeta, publicando seis traduções de Italo Bettarello e estampando na abertura da revista as palavras: "É um dos mais extraordinários fenômenos poéticos da idade contemporânea".
Se a primeira etapa de Ungaretti no Brasil é definida pela longa permanência pontuada pela perda do filho e pelo silêncio criativo, a segunda fase de suas relações com o país, a partir da década de 50, é caracterizada por grandes intervalos de tempo e por encontros e reencontros de extrema alegria.
Ungaretti retornou ao Brasil em 9 de novembro de 1954. Paulo Emílio e Antonio Candido foram esperá-lo em Santos. Hospedou-se no Lord Hotel, na avenida São João, permanecendo em São Paulo por uma semana. À sua chegada, foi informado da morte de Oswald de Andrade, que lamentaria em várias oportunidades.
Em 15 de dezembro, segundo Antonio Candido, "deu uma conferência admirável" no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro sobre a obra de Dante. Por último, leu na Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antônia, as suas traduções de Mário de Andrade, a quem considerava não só o maior poeta brasileiro, como um dos ensaístas mais inteligentes deste século.
Voltou novamente ao Brasil em 1966 para visitar o túmulo do filho. Em 17 de agosto, desembarcou do navio Augustus, também no porto de Santos. Outra vez, o receberam Paulo Emílio e Antonio Candido, agora com Italo Bertarello e Décio de Almeida Prado. Hospedou-se no hotel Ca'D'Oro, onde recebeu os amigos Flávio de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Emílio e Lygia Fagundes Telles. Manifestou o desejo de visitar Ouro Preto e dizia ter trazido na bagagem o ensaio de Mário de Andrade sobre Aleijadinho, que julgava mais interessante do que o livro do crítico francês Germain Bazin. Nesta viagem foi acompanhado por Sérgio Frederico, irmão da ensaísta Ecléa Bosi. Visitou o pintor Alfredo Volpi em companhia de Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Mário Schenberg e Umberto Eco.
Mas o acontecimento central desta viagem foi a paixão despertada no viúvo Ungaretti pela poeta ítalo-brasileira, de 26 anos, Bruna Bianco. Paixão que o faria retornar mais de uma vez ao Brasil.
Em abril de 1967, Ungaretti voltou ao país a bordo do Giulio Cesare, permanecendo aqui dois meses. Viajou com Bruna para as cidades históricas e Salvador, onde visitou Jorge Amado. Em 5 de maio, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da USP. Na época, Paulo Emílio providenciou junto ao diretor David Neves uma entrevista cinematográfica, filmada em frente na USP.
Em outubro do mesmo ano, o poeta retornou ao país e gravou um disco, "Poesia e Caritá", para o orfanato paulista Pequeno Cottolengo de Don Orione. Foi sua última visita ao Brasil.
(AM)

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