São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Os gatos do Arpoador

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Ninguém sabe como tudo começou: de repente, ali no Arpoador criou-se a maior concentração de gatos da zona sul. Aproveitando o jardim que liga a praia ao final do Posto Seis, os gatos chegaram e ficaram. Almas pias passaram a se revezar no abastecimento, nunca faltou comida para eles.
Espetáculo bonito, o dos gatos, bojudos como ídolos orientais, sempre sonolentos, espalhados pela grama, pelas pedras, curtindo o sol que, não sei por que, aumenta-lhes o sono e a gordura.
Também não se sabe como, e muito menos por que, o pessoal que frequenta a pista de skate descobriu um esporte suplementar: cegar os gatos.
São meninos da classe média, adoram tênis importados, bicicletas importadas, chicletes importados. Curtem filmes de Spielberg e toda a dinastia musical que começou com os Beatles e ainda não acabou, nem mesmo com a morte dos Mamonas Assassinas. Tudo boa gente.
Em criança, fiquei horrorizado quando soube que um grupo de rapazes, na rua Barão do Bom Retiro, havia soltado um imenso balão com um gato amarrado na boca. Bem ou mal, o gato passeou pelo céu da cidade e foi cair em Santa Cruz. Um mês depois voltou para a rua Barão do Bom Retiro, por via terrestre mesmo, gato tem fidelidade canina aos lugares, mais aos lugares do que às pessoas (o "canina" é excelente metáfora em se tratando de gatos).
O pior que podia ter acontecido a esse Phíleas Fogg felino era despencar lá de cima, caso o balão pegasse fogo. Mas os gatos têm apreciável know-how na arte de cair, tanto das nuvens como de um quinto andar.
Não sei por que eles atraem tanto amor e tanta impiedade. O amor é compreensível.
Os faraós adoravam os gatos, Brás Cubas encerrou seu famoso delírio com "Sultão", o gato que talvez fosse o único a entendê-lo.
A impiedade é pior do que inexplicável. Ela define a disponibilidade humana para a burrice e o crime.

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