São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Nunca é tarde para ser um artista

Mais de um quarto de século atrás o pintor Ad Reinhart anunciou que suas novas telas preto sobre preto eram "os últimos quadros do mundo". Os críticos deliraram, e muitos concordaram com ele, achando que suas obras-primas seriam as últimas e maiores da história. Infelizmente, porém, outros artistas se negaram a jogar fora seus pincéis. A arte não acabou.
Desde então, a arte moderna lembra uma daquelas seitas que pregam o fim do mundo, vivendo o dia seguinte ao suposto juízo final. Um dia os fiéis acordaram e viram que o sol tinha nascido outra vez, seu profeta louco tinha sumido e eles precisavam encontrar alguma coisa para fazer com suas vidas.
Essa situação difícil é hoje conhecida como pós-modernismo, e se o termo o deixa confuso, deve ser porque você está começando a entender. No interesse dos leigos, vou definir alguns dos termos básicos da arte moderna.
Arte moderna: No futuro, o termo vai significar "o tipo de arte que faziam no século 20". Como barroco ou românico, moderno será usado para situar a época de uma obra.
Cubismo: movimento iniciado por Picasso e Braque para distinguir o trabalho deles do que já tinha sido feito por Cézanne. Os críticos o chamaram de cubismo. Na arte moderna é totalmente necessário dar um nome a seu movimento artístico. O cubismo ainda é o mais importante movimento de arte moderna, pela mesma razão que o patriarca John D. ainda é o Rockefeller mais importante. Todos os outros movimentos são como os Rockefellers que vieram depois. Pode esquecer que existem, a não ser que você tenha medo de topar com uma categoria artística em alguma revista moderna.
Futurismo: foi um movimento de intelectuais que queriam substituir a tradição por um mundo moderno de máquinas, velocidade, violência e relações públicas. Prova que é bom tomarmos cuidado com os intelectuais. Algumas vezes, eles conseguem o que querem.
Dadaísmo: os dadaístas eram extremamente irônicos. Seu maior expoente foi Duchamp, cuja obra-prima foi um urinol. Ele chegou ao fim da vida jogando xadrez. Para ele, aquilo era uma declaração de arte. Meu avô também chegou ao fim da vida jogando xadrez. Mas como ele jogava para fugir do tédio, ninguém achou que ele estava provando nada. Isso nos sugere que os dadaístas são a exceção à regra que diz que os irônicos são vítimas de sua própria ironia.
Surrealismo: termo arcaico. Antes um movimento artístico, hoje impossível de distinguir da vida cotidiana.
Expressionismo abstrato: depois da 2ª Guerra Mundial os EUA emergiram como superpotência mundial. Firmas como a Cities Service e a Esso viraram grandes empresas internacionais e adotaram nomes abstratos como Citgo e Exxon para alcançar status. Como as multinacionais não podiam enfeitar os saguões de seus edifícios estilo Bauhaus com retratos de palhaços de cara
triste ou casinhas rústicas no campo, o expressionismo abstrato emergiu como a forma de decoração mais valorizada do mundo.
Pop art: antigamente, nas sociedades aristocráticas, os ricos encomendavam pinturas belíssimas para enfeitar suas paredes. Anos mais tarde, cópias baratas desses quadros acabavam em calendários pendurados em postos de gasolina. Em nossa sociedade democrática acontece o inverso. Aqui, a arte começa como um desenho de caixa de fósforos. Alguns anos mais tarde, imitações caras acabam nas paredes das casas de cirurgiões plásticos e agentes de Hollywood.
Grafite: muitas pessoas decoram suas casas com grafites, embora quase todas elas provavelmente mandariam lavar os muros de seus prédios se eles aparecessem pichados de verdade. Acho que os grafiteiros deveriam ir às casas de seus patrocinadores armados de latas de spray e deixar suas salas com jeito de vagões do metrô. Assim, poderíamos distinguir os amantes sérios do grafite dos riquinhos só interessados em emoções artísticas baratas.
Realismo: hoje em dia os quadros realistas são valorizados pelo domínio técnico demonstrado pelo artista. No próximo século, quando a arte for embalada como software de realidade virtual, os quadros realísticos serão vendidos com preços da caríssima mobília Shaker. A mobília Shaker será vendida por preços que hoje são dos quadros de Van Gogh. Contas de colar que pertenceram a Jackie Onassis só vão aparecer no mercado muito de vez em quando.
Arte comercial: qualquer coisa feita por um artista que tenha uma caixa registradora ao lado da porta. As obras de arte comercial costumam ser entregues ao cliente dentro de um saquinho de papel, com a nota fiscal grampeada do lado.
Belas artes: no caso da arte comercial, você pesquisa quanto vão te pagar, depois produz o trabalho. Com as belas artes, a ordem se inverte.
"Isso não é arte, é ilustração": hoje em dia quase todo mundo é artista. Cantores de rock são artistas. Diretores de cinema, performáticos, maquiadores, tatuadores, rappers e estelionatários, todos são artistas. Estrelas de cinema são artistas. Madonna é artista porque explora sua sexualidade. O rapper Snoop Doggy Dog, que faz shows com mulheres seminuas, é artista porque explora a sexualidade dos outros. As vítimas que expressam sua dor são artistas. Os presidiários que se expressam na cartolina que vem dentro da embalagem de uma camisa nova são artistas. Até os consumidores são artistas. Parece que as únicas pessoas na América que não são artistas são os ilustradores.
Kitsch: de quando eu era criança até hoje, o kitsch avançou do sentimentalismo cínico dos calendários de Maxfield Parrish para o cinismo sentimentalóide dos filmes de Batman.
Estilo: é o que o artista moderno tem de mais valioso. Talvez por isso a polícia registra tantas ocorrências de estilos perdidos ou roubados.
Tradição: ainda existem alguns tradicionalistas, que continuam pintando um realismo sincero pré-Primeira Guerra Mundial. Há décadas a vanguarda gosta de ter esses artistas por perto para fazer retratos do "establishment" artístico. Só que, há décadas, o "establishment" artístico só é composto por escultores da terra, sujeitos que fazem piercing pelo corpo e violoncelistas de topless. Os artistas tradicionalistas fazem os retratos dessa gente e ganham uma mixaria.
Arte de vanguarda: há mais de cem anos, alguns boêmios franceses decretaram que o objetivo da arte era chocar a classe média. É possível que tenha sido uma grande idéia na época. Mas hoje em dia as classes médias não andam dando muita bola para a vanguarda. Elas estão mais interessadas em assistir a programas de TV que mostram suas experiências instigantes de vestir-se como o outro sexo. Os artistas de vanguarda têm que assistir a tudo isso, em desespero, lamentando a que ponto chegou a cultura americana, enquanto esperam por mais verbas para sua arte de vanguarda. No futuro, essa cena da classe média chocando a vanguarda provavelmente vai virar o verbete do pós-modernismo num compêndio sobre arte deste século.
"Às vezes a gente tem que romper com as normas": uma das coisas que poucos apreciam na arte moderna é que sua filosofia pode ser resumida num comercial do McDonald's .
Artesanato: os artesãos tradicionais trabalhavam dentro de determinadas convenções. Às vezes, essas convenções eram redefinidas por um gênio. Mas, na arte moderna, todo mundo tem
que redefinir a arte. Isso poderia ter feito de nossa era outro renascimento, se tivesse acontecido uma repentina explosão de gênios pelo mundo afora. Mas como é mais comum encontrar ego do que gênio, a arte pós-modernista está fadada a ser mais narcisista que heróica.
Teoria da arte: o artista moderno típico produz uma obra pequena envolvida por muita teoria. Alguns chegam a dispensar a obra em si e expõem apenas a teoria. Para mim, parece ser uma economia de estilo que demonstra muito bom senso. Se o objetivo da arte é redefinir a arte, então as palavras devem bastar. Não adianta superlotar o mundo de exemplos redundantes.
Auto-expressão: trinta anos atrás o sonho de cada artista boêmio era ser visto saindo de uma limusine, usando jeans e tênis. Hoje, esse deve ser o sonho de metade da população nacional.
O milagre da autenticidade: a crença de que se todos formos autênticos e nos expressarmos, a sociedade se beneficiará disso. É um ideal encantador, mas ignora o óbvio. O mundo está cheio de idiotas e cretinos autênticos. Incentivar esses caras a se expressarem não vai fazer muito bem a ninguém, muito menos à sociedade.
Instinto: voltando à selva pré-histórica, os bichos que confiaram em outros bichos acabaram comidos. Os únicos que sobreviveram eram aqueles que instintivamente comiam a cabeça dos outros. Isso explica por que tantas pessoas que, como os artistas, seguem seus instintos, se comportam como crocodilos.
Arte conscientizadora: toda vez que percebo que um artista está tentando me conscientizar, me lembro de Jane Fonda, Sissy Spacek e Jessica Lange explicando ao Congresso as realidades da vida rural.
Jung para sempre: os pós-modernistas acreditam que a verdade é mito e o mito, verdade. Essa equação tem suas raízes na psicologia pop. Essas mesmas pessoas acreditavam que as emoções são uma forma de realidade. Antigamente havia outro nome para esse estado de espírito: psicose.
Multiculturalismo: nunca entendi porque os artistas, que tantas vezes desprezam os clichês de sua própria cultura, se mostram tão ansiosos por adotar os clichês de culturas sobre as quais não sabem nada.
Esperando Van Gogh: no mundo em que a maioria de nós cresceu, a arte popular herdou e explodiu todas as formas de arte anteriores a ela. A verdade do pós-modernismo é que ainda não descobrimos como os artistas vão se sair nas sociedades modernas.

Tradução de Clara Allain

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