São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 1996
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'Trainspotting', frágil heroína da passagem do tempo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Trainspotting". Jovens correndo nas ruas da Escócia. Desde o princípio, você vê que está diante de um filme novo. O narrador, Alex, de cabeça raspada, fala sobre a escolha -escolher entre uma e outra marca de carro, um e outro time de futebol, uma ou outra grife de moda; não, ele sai dessa. Optou pela não escolha: a heroína.
Baseado em uma novela de Irvine Welsh, que só se entende melhor lendo em voz alta, "Trainspotting" foi produzido pelo Channel Four inglês mas tem tudo que às vezes falta aos chamados filmes alternativos: direção de atores, fotografia, ritmo e, naturalmente, um pouco de humor.
A sociedade envolvente é tratada sem piedade. Mas não há nenhum glamour em torno da droga.
A heroína é mostrada como é -um ponto de fuga que destrói lentamente a vontade, o desejo sexual e transforma os seres humanos em patéticos pacotes de músculos jogados no chão da sala, às vezes, em dois diferentes episódios, literalmente mergulhados na merda.
O fotógrafo Brian Tufolo trabalhou magistralmente com a luz e tomou as liberdades possíveis, para quem vê da perspectiva de um viciado em heroína. Ele pode permanentemente transitar em uma atmosfera sombria e irreal, pois é esse o horizonte do narrador da história, Alex Renton.
Em certos momentos, e são poucos, a câmera perde essa perspectiva maluca, exatamente tentando encontrá-la.
Por incapacidade de reproduzir o olhar de Alex aqui e ali, tentam-se ângulos que representam apenas um esforço físico, uma ginástica vazia, como se realmente virar tudo de cabeça para o ar ajudasse a trazer vida à cena.
Quem teve a oportunidade de ver a retrospectiva de Francis Bacon no Centre Pompidou vai perceber que realmente o buraco é mais embaixo e que existem distorções e distorções da figura humana.
As do genial pintor irlandês, às vezes, parecem uma caricatura. Mas não são.
Como explica um dos seus grandes exegetas, Michel Leiris, são presenças vivas, inconfundíveis. Quando se olha para eles a primeira sensação é a da vida, independente de achá-las feias ou bonitas, a mesma sensação que se tem diante de um grande ator, quando entra em cena.
"Trainspotting" não pode escapar dos limites da fotografia. E Bacon sempre se declarou livre de qualquer traço de reportagem em seu trabalho -assim como era livre de mensagens políticas, religiosas ou até mesmo do impressionismo que deforma alguns elementos, para melhor ressaltá-los; isto é, para dizer alguma coisa.
"Trainspotting" talvez tenha conseguido não passar nenhuma mensagem. Nos momentos em que tenta isso, o texto é tão patético que a própria substância poética arrasta as reflexões políticas para o seu abismo.
Um desses momentos acontece quando os quatro amigos saem para um passeio no campo. O trem os deixa em uma linda região e eles vão subir a montanha.
Três se recusam a seguir a caminhada. Sentam no chão, discorrem sobre o horror de ser escocês, um povo covarde e sem inspiração, da tragédia que é ser colonizado por ingleses. Concluem que não há ar puro no mundo que possa reparar essa situação.
Se fosse apenas a sociedade de consumo, se fosse apenas a mediocridade escocesa e seus colonizadores, talvez até resistissem bem.
Discretamente, um inimigo insidioso aparece aqui e ali nos diálogos, mostrando que ele sim é implacável e invencível: o tempo.
Com um fuzil na mão falam de cantores, Lou Reed, por exemplo, que manteve sua simpatia, mas ficou velho. E ficar velho, aparentemente, só nos deixa com a simpatia porque toda a força criativa se esvai com os anos.
Mesmo tema, outro ângulo. A jovem namorada diz a Alex na cama:
"Querido, as coisas mudam, a música muda, a droga muda. Vocês insistem na heroína, nesse tal de Ziggy Pop".
"Iggy Pop", protesta Alex, insultado com a ignorância sobre seu ídolo. Mas é tarde demais, o dardo alvejou seu coração -eles também, que sempre desconfiaram dos anos, estavam ficando velhos e eram olhados com a mesma piedade por aqueles que vinham depois.
A volta à sociedade, o reencontro com uma vida normal se faz sem nenhuma grande exaltação.
No final do filme, Alex, depois de um pequeno golpe sobre seus parceiros na venda da droga, escapa para a normalidade, que ele traduz em algumas palavras, o passeio no parque, a coleção de suéteres, o futebol. Enfim, todas aquelas opções das quais fugia nas primeiras cenas do filme.
Só a heroína, talvez, é um elemento novo nessa história de uma geração que envelhece, fugindo do tempo e de seu decreto final, que é a morte.
Fellini e outros diretores italianos já deram sua versão desse drama. E, coincidentemente, estréia esta semana em Paris, "Alma Corsária", do brasileiro Carlos Reichenbach, também contando o transcorrer da juventude de dois poetas paulistas.
"Trainspotting", baseado em uma novela bem construída, consegue falar com a luz, o movimento de câmera, a trilha sonora e, dentro dos limites do tema, transcender o sentimentalismo, limitando-se a apenas constatar que tudo muda, a música, a droga e -por que não?- a própria maneira de se contar uma história.

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