São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 1996
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Olimpíadas encenam ficção internacionalista

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Acho que nunca se investiu tanto, em termos de marketing, quanto nas Olimpíadas de 96. Há um verdadeiro frenesi mercadológico em torno do evento. A sentimentalidade do velho ursinho Mischa, nas Olimpíadas de Moscou, o mercovanguardismo em torno de Miró de Gaudí, nas Olimpíadas de Barcelona, empalidecem diante do enorme comercialismo das Olimpíadas de Atlanta.
Não que eu seja contra essa vendagem esportiva. A mim, pouco importa. Sempre achei uma idiotice o "ideal olímpico". A começar pela máxima do barão de Coubertin, segundo a qual "o importante é competir".
Sempre pensei que ninguém compete se não pensa em ganhar. O importante é vencer, por isso é que se compete.
Mas o barão de Coubertin pensava, provavelmente, em outra coisa. Julgava promover a paz entre os povos, a harmonia entre as nações, em cada disputa olímpica. Donde a máxima "o importante é competir", ou seja, o importante é que países que se odeiam, raças que se execram, aceitem os mesmos critérios de excelência física, de rivalidade corporal.
O curioso é que, em um mundo cada vez mais globalizado, como se diz, as Olimpíadas tentem manter essa ideologia internacionalizante e fisiculturista.
Serviram para encenar uma ficção internacionalista, em um mundo até há pouco atravessado por rivalidades geopolíticas, enquanto davam, ao mesmo tempo, vazão clandestina ao próprio nacionalismo que diziam eliminar. Mas qual sentido de realizá-las agora, quando o próprio orgulho nacional se torna coisa das mais suspeitas?
Talvez não tão fora de moda assim. A parcela mais atrasada e fascista da opinião pública ainda vibra diante das conquistas deste ou daquele esportista que empunha a bandeira nacional.
O que me leva a uma primeira conclusão: as Olimpíadas servem como prêmio compensatório aos países oprimidos. O corredor do Quênia, o arremessador de Botswana, o saltador de Malaísia, o iatista brasileiro, compensam, triunfantes, o papel secundário que seus respectivos países exercem na arena internacional.
Mas dizer isso é dizer pouco. Minha impressão é que, com toda essa euforia mercadológica, o que se celebra, no fundo, é o fim do ideal olímpico. É a decadência definitiva do velho atletismo greco-romano.
Se não, vejamos. Na televisão a cabo, exibem-se periodicamente os mais espantosos, os mais circenses esportes radicais. A habilidade de um adolescente em seu skate, a beleza das acrobacias do surf, o espantoso de uma escalada, o extremo risco de uma descida de caiaque em corredeiras canadenses, os iô-iôs humanos, os shows de pára-quedistas: há algo, nas Olimpíadas, que se compare a tudo isso?
Competições como as de arremesso de martelo ou salto tríplice não passam, hoje em dia, de sobrevivências culturais, de anacronismos ideológicos, frente ao mundo realmente heróico e radical dessas proezas transmitidas pela TV.
O próprio esporte mudou de significado de uns tempos para cá. Não se trata apenas de uma competição de excelência física -ver quem corre mais ao longo de cem metros- mas de uma exibição suicida, de uma imolação corporal diante dos perigos mais extremos: a onda de 25 metros, a ribanceira de 400 metros, o abismo, a morte, a vertigem.
Como espetáculo, as Olimpíadas não podem oferecer nada de comparável ao que oferecem os loucos do balonismo, os dementes do esqui, os histéricos da asa-delta. Talvez só a ginástica e os saltos ornamentais, sempre a coisa mais coreográfica e interessante da competição.
Mas toda a histeria em torno dos Jogos de Atlanta parece-me, antes de tudo, o esforço desesperado do marketing para dar conta de uma idéia -o esporte, a competição olímpica entre países- claramente anacrônica hoje em dia.
Se excluirmos os jogos coletivos -vôlei, futebol- e algumas modalidades mais individuais inteligentes, como o tênis e mesmo o boxe ou o judô (onde contam habilidade, estratégia, psicologia), grande parte dessa competição esportiva perdeu o sentido assim como os concursos de bebê johnson.
Que alguém quebre um recorde em levantamento de peso ou nos cem metros rasos, só tem interesse se estivermos imbuídos de ideais eugênicos de "melhoria da raça" ou da curiosidade entediada das piores páginas do Livro Guinness.
Estamos diante de um espetáculo vagamente ridículo: levantamento de peso, arremesso de disco, corrida de obstáculos-, quando a exploração dos limites físicos do ser humano (se é que isto interessa de fato) e, mais do que isso, o jogo da audácia e da adaptação física se dão em outras modalidades esportivas ou paraesportivas, que as Olimpíadas desconhecem.
O que sempre foi uma chatice, ao menos para mim, intensifica-se nestes últimos anos. Os Jogos Olímpicos não têm nenhum interesse -e é por isso que se insiste, mais do que nunca, em uma exploração mercadológica em torno deles. São o espaço vivo da Pepsi, da Coca, do Gatorade, da Adidas, da Philip Morris: são a ficção propagandística que se confessa falsa, a banalidade do bem.

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