São Paulo, sexta-feira, 26 de julho de 1996
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Cães podem ter "vida mental e consciência"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Depois da inteligência emocional, tema do best seller do dr. David Goleman (editora Objetiva), já comentado aqui, chegou a vez da inteligência canina.
O livro do psicólogo e treinador de animais Stanley Coren, "A Inteligência dos Cães: Tudo sobre o QI e as Habilidades dos Cachorros", acaba de ser publicado pela Ediouro; já vendeu perto de cem mil cópias nos Estados Unidos.
Além de uma parte teórica, apresenta uma série de testes de QI para o seu cão e dá sugestões de como melhorar o desempenho intelectual dele, caso não atinja níveis satisfatórios.
Se bem que, no último capítulo, Stanley Coren termina questionando um pouco a necessidade de se ter um cão inteligente.
Um Einstein do mundo canino pode ser companhia desagradável. Por exemplo: se você veste um casaco, ele imediatamente pensará que vai dar um passeio e começará a ficar muito agitado.
Pode aprender a subir na cadeira para alcançar o armário onde você guarda chocolates finos, escargots, caviar.
O autor conta o caso de um cachorro cuja dona não podia nunca mencionar a palavra "passeio", nem mesmo em conversas casuais. Punha-se desesperado.
A dona passou a soletrar a palavra para que o cão não percebesse; mas ele logo aprendeu que "pê-a-ésse-ê-i-o" era aquilo mesmo.A dona do cachorro deveria ter sido melhor treinada. Mas há exemplos mais interessantes.
Stanley Coren conta que o cão Buck estava voltando de uma caçada com seu dono e um amigo do dono. Os dois homens perceberam que tinham esquecido os chapéus na cabana onde costumavam se abrigar. Cão treinado e obediente, Buck teve de ir buscar os chapéus.
Foi quando se deparou com um problema. Um chapéu era do tipo texano, gigantesco. O outro era um boné de beisebol.
O cão pegou o chapéu texano, mas não conseguiu abocanhar o boné depois disso.
Tentou começar pelo boné, mas aí era o chapéu de texano que se mostrava rebelde. Parou um pouco.
"Depois usou a pata dianteira para encaixar bem o chapéu menor dentro do maior. Enfim, ele pegou o chapéu maior, agora servindo como que de cesta para o menor, e trouxe-os até os dois homens que aguardavam". Assim é a história.
No momento em que o cão parou antes de colocar o boné dentro do outro chapéu, é difícil não dizer que ele estava "pensando".Com certeza, Buck agiu com "inteligência".
Naturalmente, o ponto de Stanley Coren é defender a idéia de uma inteligência e mesmo de um "pensamento" caninos. Mas o que é "pensar"?
Se balanço as chaves perto de meu cachorro e me dirijo até a porta, é claro que ele ficará mais agitado, "pensando" que vai dar um passeio.
Nesse caso, usamos a palavra "pensar" como sinônimo de "esperar", "entender", "perceber".
Qualquer cachorro é capaz de reagir a sinais específicos de seu dono. Se quisermos chamar de "inteligência" essa capacidade de reação, certamente não estaremos fazendo um uso abusivo do conceito.
O autor dá uma lista de palavras -quase 70- que, segundo ele, um cão bem-treinado é capaz de entender. Mas o que é "entender uma palavra"?
Há na verdade todo um contexto e um conjunto de atitudes corporais e mensagens inconscientes do treinador envolvidos na percepção canina.
Mas o importante para o livro é justamente alargar ao máximo a idéia de "inteligência" e de "pensamento", para além das reações de reflexo condicionado, de treinamento etc, de modo a que a posse de um amplo universo mental possa ser atribuída aos cães.
Coren sustenta que, se um cão "espera" uma ordem, "quer" brincar, "gosta" de crianças, isso tudo "implica vida mental interior e consciência".
A conclusão é triunfante. E certamente os cachorros que o leram devem ter abanado o rabo de felicidade. Felicidade não; um misto de vaidade e satisfação por ver a justiça sendo finalmente feita.
Se não há dúvidas de que um cão possa "entender" muita coisa, parece-me entretanto óbvio que ele "não sabe" o que ele está entendendo.
Reconhece o dono depois de um período de ausência até bastante longa. Mas não é plausível dizer que, durante essa ausência, Totó tenha "pensado" no dono.
Como sabemos que isso não acontece no íntimo da vida humana? Porque sabemos que ele não possui linguagem, conceitos, tempos verbais, conjunções...
Se pudéssemos pensar sem tudo isso, pensaríamos como um cão.
Creio que foi Schopenhauer quem disse que os animais vivem sempre no presente, sem passado nem futuro -projeções conceituais de nossa parte.
Mas um cão tem memória! Sim, reconhece a coisa que já viu, quando a vê de novo... no presente.
Não sei se toda essa argumentação não é evidente demais. É que o livro de Stanley Coren, no fundo, obriga a esse exercício, tão laboriosos os seus exercícios de confiança cachorral.
Por que essa ênfase na inteligência dos cães? Corresponde, creio, a alguns fatores permanentes e a outros conjunturais na cultura de massas americana.
Há um misto de sentimentalidade e antiintelectualismo onipresentes no universo daqueles famosos cemitérios para cachorros na Califórnia.
Há uma crença tão disseminada e democrática na igualdade dos direitos, na dignidade do ser humano, ao lado de tanta falta de igualdade, de tanto dinheiro sobrando e de tanta solidariedade de menos, que é como se o democratismo se estendesse aos cães porque funciona pouco na vida real.
O discurso em torno da dignidade do ser humano não pode estender-se a todas as dimensões da vida prática, em uma sociedade tão desigual e competitiva; mas não pode extinguir-se pura e simplesmente, como se fosse mera fantasia.
O discurso paira, então, à procura de objeto -e termina aplicando-se, então, aos cachorros, águias, jacarés, o que quer que passe pela frente.
Claro que isso não vale apenas para os Estados Unidos; mas é lá que encontramos, em um exagero, em uma caricatura, o que ocorre em toda sociedade ocidental.
Por outro lado, é nos Estados Unidos que a cultura da competitividade, dos testes de QI etc. se estabeleceram com mais ênfase e há mais tempo. A insegurança individual se projeta mais uma vez sobre o cachorro, que todo dono espera ser inteligente. E, se não for, pode ser aprimorado e educado como qualquer outro ser humano.
Mas um fator adicional complica o quadro: é a mentalidade politicamente correta. Há raças mais inteligentes do que outras? Coren diz que sim; o collie, o poodle e o pastor alemão estão no topo da lista, muitos furos acima do buldogue, do bassê e do pequinês.
Mas logo o autor trata de nuançar esse "racismo" e reconhece que os dados recolhidos são ainda suscetíveis de muita reformulação.
Outro problema é que parece que os machos são mais inteligentes do que as fêmeas. A própria Lassie, dos seriados de TV, era na verdade um collie do sexo masculino. Vários, aliás. O mundo está perdido mesmo.
O tom meio ridículo do livro inteiro não exclui muitas observações interessantes. Você sabia por que os cachorros preferem fazer xixi em postes e outras superfícies verticais? A resposta é óbvia, mas eu não sabia.
É que assim o cheiro da urina fica exatamente na altura do focinho do outro cão que passar por perto. Senti-me um pouco mais burro por nunca ter atinado com essa explicação. Mas não faz mal; sempre se pode aprender alguma coisa na vida.

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