São Paulo, sábado, 27 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Camisa de força terá teste

CELSO PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A queda de Cavallo cria um novo teste importante para a credibilidade externa da Argentina. Não é, contudo, sinônimo automático de mudanças de regras econômicas.
O sistema cambial argentino, o "currency board" (conselho da moeda), cria uma camisa de força difícil de romper. Os riscos seriam enormes.
O sistema argentino garante, por lei, a troca automática de pesos locais por dólares e só permite expansão monetária se houver aumento de reservas externas. Com isso, cria-se um sistema automático de ajuste do governo: não há como financiar exageros de gastos fiscais com expansão monetária.
Exatamente por esta razão, o "currency board" é um instrumento poderoso para um país que passou por uma hiperinflação dolorosa, como a Argentina, readquirir sua credibilidade. A inflação aterrissou, houve enorme entrada de capitais externos e o país viveu vários anos de expansão econômica acelerada.
A mesma rigidez que ajudou no início, contudo, torna mais difícil ao país adaptar-se aos problemas. Como a inflação cai bastante, mas não desaparece inteiramente por algum tempo, acumula-se uma valorização do câmbio, ou seja, o custo dos produtos exportáveis fica maior em dólares. Surgem déficits na balança comercial e na conta corrente.
Enquanto existir disposição externa de continuar financiando o país, tudo bem. Cavallo foi um mestre na arte de vender o sucesso do programa e manter o fluxo de dólares.
A crise mexicana de dezembro de 94, contudo, foi um desastre. O fluxo de dólares estancou. Como a moeda interna só expande com o aumento de reservas, houve forte contração da moeda e da economia (caiu 4,4% em 95).
Sem financiamentos, a única forma de aliviar a situação é melhorar a competitividade das exportações. Como, por definição, o sistema não permite que isso seja feito por uma desvalorização cambial, é preciso reduzir o custo nominal de produção, reduzindo salários.
Ninguém imaginava que isso seria possível, mas Cavallo conseguiu fazer um ajuste considerável no ano passado. Houve deflação em vários meses (queda nos preços) e a inflação no ano ficou em apenas 1,6%. O déficit em conta corrente, que havia sido de 3,3% do PIB em 94, diminuiu para 0,8% do PIB.
O custo, contudo, foi recessão, redução de salários e desemprego. Aumentaram as pressões políticas. Por que não mudar o sistema?
Porque existe uma percepção generalizada que se a Argentina abandonar a conversibilidade, a situação poderá fugir de controle. Como a conversão está inscrita em lei, seria preciso aprovar outra lei que a substituísse. Assim que o governo anunciasse sua intenção de mudar o câmbio, os mercados antecipariam as mudanças e haveria uma corrida contra o peso.
Outra razão é que a Argentina já era, antes do plano, uma economia dolarizada. Hoje, com a conversibilidade, é inteiramente dolarizada. Assim que os argentinos percebessem que o valor do peso estaria ameaçado, fariam uma corrida contra sua moeda.
Neste sentido, o sistema é ingrato: só pode ser flexibilizado sem problemas se isso for desnecessário. Anos de estabilidade e contas externas sustentáveis poderiam permitir uma mudança não-traumática no "currency board". Mas, no meio da crise, sair do sistema poderia criar mais problemas do que resolvê-los.
O grande desafio da Argentina, agora, será convencer os mercados que seu sistema econômico conseguirá resistir às pressões políticas e à saída de Cavallo. Se não conseguir, o custo será alto e o Brasil acabará pagando parte da conta.

Texto Anterior: Brasil espera manutenção do câmbio
Próximo Texto: Queda traz riscos "administráveis"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.