São Paulo, sábado, 27 de julho de 1996
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A era da insegurança

RUBENS RICUPERO

Por ocasião do encontro do Grupo dos Sete em Lyon, o diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, fez uma conferência na qual lembrou que, no seu tempo de liceu, um tema frequente de redação era responder à pergunta: quando começou, de fato, o século 20?
Teria sido, como indica o critério cronológico, em 1901 ou 1900? Ou, preferindo o ponto de vista da relevância histórica, em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial? Para os partidários da perspectiva cultural, poderia ter sido em 1907, quando Picasso pintou as "Demoiselles d'Avignon".
Confessando-se incapaz de decidir, Camdessus afirmava, em compensação, não ter dúvidas de que o século 21 começou em dezembro de 1994, no momento em que os mercados mundiais demonstraram, pela intensidade de sua reação à desvalorização mexicana, o significado real da globalização.
Achei sugestivo e revelador que o diretor do FMI, normalmente inclinado a valorizar os benefícios reais ou imaginários da globalização, tivesse escolhido para caracterizá-la seu aspecto mais inquietante: o de ser ela a fonte maior da insegurança e do medo destes tempos de incerteza.
Com efeito, nada é tão perturbador, no mundo atual, como a velocidade com que as verdades de ontem se convertem nas dúvidas de hoje.
Como exemplo, basta recordar que, cinco anos atrás, pouca gente duvidaria de que o Japão estava em marcha batida para assumir a liderança econômica mundial, os Estados Unidos eram uma potência em declínio, a Europa de Delors superara o europessimismo com a conclusão do mercado comum e o avanço rumo à união monetária, o México era a estrela em ascensão no firmamento latino-americano e os "tigres asiáticos" pareciam imbatíveis no crescimento das exportações e na acumulação de saldos gigantescos.
De repente, o caleidoscópio global assume configuração completamente diferente... O Japão sai penosamente de uma longa recessão que destruiu a crença em sua invulnerabilidade econômica. Os americanos voltam a ser os líderes indiscutíveis das economias avançadas, os únicos a caminho de eliminar o déficit orçamentário sem perder a capacidade de crescer moderadamente, com inflação baixa e geração de empregos.
Em contraste, os europeus estão se debatendo com o dilema, aparentemente intratável, de conciliar as metas de Maastricht de redução do déficit e da dívida com a necessidade de combater um desemprego em níveis jamais vistos desde a Grande Depressão.
O México continua a pagar um preço altíssimo pelo infortúnio de ter dado a partida para o século 21. E, para concluir o exame dos dogmas de ontem, até os "tigres asiáticos" dão sinais de terem sido, em parte, contagiados pela doença latino-americana: queda precipitada na exportação de manufaturados, inclusive artigos eletrônicos, e aparecimento de déficits no balanço de pagamentos, chegando, em alguns casos, a 8% do PIB!
A lição a tirar de tudo isso é que nada é definitivo e irreversível no êxito de um dia e no fracasso do dia seguinte. As coisas estão em constante efervescência, pois a globalização é apenas o nome simplificado de uma profunda mudança estrutural que levará décadas para se completar, um desses "ciclos longos" de que falava Braudel.
Enquanto a terra treme e as camadas se acomodam, não há lugar para repouso, nem para a garantia de primazias conquistadas. Tudo está em questão.
Podemos e devemos não gostar disso, podemos e devemos reagir para reconquistar a segurança, anseio profundo do ser humano.
Para isso, porém, é preciso não se iludir e perceber com realismo que nunca foi tão verdadeira a queixa de Camões de que "não sabe o tempo ter firmeza em nada". Ou, se preferirem, a descrição de Chesterton da condição criada pelo pecado original: "Estamos todos no mesmo barco e todos com enjôo". Haverá melhor definição da globalização?

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