São Paulo, sábado, 27 de julho de 1996
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Nelson Freire dá show em noite inspirada

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O concerto, a rigor, só começou na metade da segunda parte. Alguma coisa -inspiração, conforto, visita de espíritos- aconteceu com Nelson Freire anteontem, no teatro Cultura Artística, entre a "Sonatina" e a "Alborada del Grazioso" de Ravel.
A partir desse ponto, o mesmo homem, no mesmo piano, se transformou em outro e transformou o instrumento também.
Não que o concerto não fosse bom até aí. Nelson Freire nem sabe mais o que é tocar menos que bem. Tocou as Rapsódias op. 79 de Brahms com virtuosismo (toda música para piano de Brahms é difícil, e as Rapsódias não são exceção); mas sem fazer do virtuosismo um show. Foi um Brahms beethoveniano, maestro de intervalos e formas.
E tocou a sonata "Les Adieux" de Beethoven com inteligência brahmsiana, a melancólica engenharia de sestas aumentadas, de um lado, e simplíssimas terças e trinadas de outro.
Encanto
Mas um "bom" concerto é pouco: a gente sempre espera um concerto inspirado. E foi na "Alborada del Grazioso" que Nelson Freire desencantou, ou foi encantado por uma potência da música. O piano ganhou sonoridade e densidade e até a batida.
"Alma Brasileira", de Villa-Lobos, reviveu na ilusão dos grandes espaços e da transcendental malemolência.
"Bom gosto", entre aspas, não é critério para se julgar a música de Liszt, como também de Wagner e Berlioz, e tantos outros grandes compositores do século passado. A questão aqui é outra.
No caso do "Soneto 104 de Petrarca", uma das peças do segundo volume de "Anos de Peregrinação", seria equivocado procurar consistência beethoveniana em uma música cuja virtude é a própria liberdade, para não dizer licenciosidade da forma.
Tudo é maleável, tudo pode sofrer inflexões e a quinta aumentada, intervalo de transição por excelência, é um símbolo desse afeto raro e moderno.
Prova olímpica
Já a "Rapsódia Húngara nº 12" pertence a outro gênero, que é o do virtuosismo explícito. É uma prova olímpica, apropriada para a estação, e Nelson Freire fez dela um palco para acrobacias dos dedos e do humor.
Há uma coisa chata para dizer sobre a platéia, mas necessária. Se você sofre de tosse, nervosa ou brônquica, compre umas balinhas e leve para o concerto. Fará bem para a tosse e para os vizinhos.
Mas nem a tosse -polifônica, constante, mal-educada- conseguiu desconcentrar o grande pianista em grande noite.
E tão à vontade estava que tocou, feliz, nada menos que cinco bis, como quem toca não só para a platéia, mas também para si mesmo, pelo prazer de tocar -que nem sempre é um prazer para os músicos, mas é, sim, quando se está neste ponto.
Aqui também, nas peças da suíte "Children's Corner" de Debussy, em Rachmninof, ou na ária barroca que manda as pessoas sonhando para casa, Nelson Freire foi um pianista dos pianistas, com a simplicidade elevada que é a conquista de uma vida.
Resta imaginar o que não seria ele na companhia de Martha Argerich, e ficar esperando o concerto do duo, adiado indefinidamente.

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