São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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Segredos compartilhados

GÉRARD LEBRUN

A entrevista de uma personalidade literária é um gênero perigoso. Entrevistado com respeito excessivo, o escritor nada dirá de novo sobre si mesmo. Se, ao contrário, ele for submetido a questões indiscretas, responderá furtando-se, querendo se livrar o quanto antes do importunador. Admiro o fato de que Betty Milan, entrevistadora debutante, tenha evitado os dois perigos. Nem conformista nem agressiva, nem ingênua nem pedante, empenha-se em obter uma quantidade de confidências suficiente para conferir ao autor a proximidade que desperta vontade de ler -se não de reler.
O empenho dela não é recompensado em todos os casos. Em alguns, que, aliás, são raros (e eu deixo o leitor apontá-los), a corrente simplesmente não passa. A entrevistadora nada tem a ver com isso. É o autor que recusa a idéia de se autocomentar, imaginando, decerto, que o seu texto basta a si mesmo e toda glosa implicaria sobretudo o risco de um mal-entendido. Esta posição (a de Nathalie Sarraute, que merece todo o meu respeito) é perfeitamente defensável -e não há porque se irritar com um entrevistado que, de quando em vez, evita as questões. Sempre que Betty Milan não topa numa retração de princípio -caso mais frequente-, ela consegue mostrar o interlocutor na sua melhor forma.
A entrevista com Jean d'Ormesson, cuja auto-ironia dá prazer, é um exemplo feliz disso. Aposto que mais de um leitor vai achar que é demasiadamente curta e desejará conhecer melhor este "aristocrata" da República das Letras, com um excesso de talento para ser maldoso. Obrigado a ele e a Betty Milan pela lufada de século 18... Excelente também a franqueza de Jean-Claude Carrière, falando com tanta paixão quanto precisão do seu ofício de dialogista... E, por aqui, eu paro. A idéia de dar ibope não me agrada. Não cito as entrevistas que preferi ou teria preferido citar. Só quero dizer que a habilidade de Betty com frequência conduz o autor a falar de si com lealdade e sem a pretensão de mostrar que é sério. (...)
A que gênero pertencem os textos que dela leremos? Melhor não considerá-los decorrentes do jornalismo. Seria supor que o "jornalismo" é um gênero literário, quando é um modo de difusão que inclui vários gêneros -do panfleto à filosofia política, passando pela crítica literária... Sei lá eu. Talvez possamos incluir este livro na última categoria: uma crítica literária dialogada. As entrevistas que leremos numerosas, ao meu ver são tão estimulantes quanto os melhores "Lundis" de Sainte-Beuve.
Nesses tempos pós-estruturalistas, o elogio poderia parecer uma agulhada na autora. Não tenho semelhante intenção, pois insisto no não-conformismo a ponto de pensar que, se reinserirmos uma obra na biografia do autor, em nada diminuímos a sua consistência e a tornamos ainda mais interessante. Talvez já esteja na hora de rever o processo instruído e julgado por Proust contra Sainte-Beuve. A "crítica literária" que se recusa (ou se recusaria) a renegar Sainte-Beuve só é arcaica para quem considera arbitrariamente que a análise das obras literárias é da alçada exclusiva dos técnicos do Texto -tão drástica é esta posição que a própria noção de "autor" acaba passando por vetusta e a de "sensibilidade" é simplesmente dispensada. Nem todos os inovadores consagrados da literatura esposam essas idéias extremadas.
Mas o que é um bom crítico literário? Eis a resposta de uma das interlocutoras de Betty Milan:
"É preciso que ele seja muito sensível à escrita em si, que saiba exprimir o que sente no contato com um livro e se aproxime do que o livro pretende dizer. O crítico deve ter a sensibilidade muito aguçada. Isso vale para cada um dos livros que lê...".
Quem disse isso não é uma cronista de uma revista bem-comportada, é Nathalie Sarraute. Porque a subversão eficiente precisa bem menos do terrorismo intelectual, a arma pobre, do que se imagina. Agora que as polêmicas acirradas dos "sixties" pertencem à história literária (a de Picard contra Barthes, a propósito de Racine; a de Boyancé contra Bollack, a propósito de Lucrécia), talvez já tenha chegado o momento -aqui também- de rever os processos feitos a uma "velha guarda"... literariamente incorreta.
Os métodos de análise ditos "estruturalistas" são úteis na medida em que acabaram com a psicologia sumária (e possivelmente ingênua), que era a praga dos estudos literários na França ainda nos anos 50. Podemos, no entanto, duvidar dos limites da competência desses métodos quando o crítico ou o hermeneuta que os dogmatizou, proíbe "que se considere o que um livro pretende dizer" (...). Ou, então, quando um estudante, em geral bem formado, acredita ter analisado uma argumentação cerrada de Nietzsche ou de Bergson, meditando sobre a alternância das formas interrogativas e assercionais num determinado fragmento. Quando o examinador sou eu, fico profundamente insatisfeito...
No terreno literário, a situação não é muito diferente. É tão lamentável aí considerar como indigno de interesse teórico a identificação dos afetos novos que o romancista procura despertar quanto negligenciar, num texto filosófico, o conceito novo que o autor, com maior ou menor dificuldade, tentava introduzir. Diante das proezas dos técnicos do Texto, a gente se sente até mal de lembrar que os autores (de filosofia) também provavam que uma tese era insustentável ou reformulavam um problema mal enunciado para indicar a futilidade intrínseca das "soluções" que se acreditava necessário dar a ele -em suma, querer dizer algo de importante, fulgurante às vezes e preciso sempre.
Quando o comentarista procura dar conta de um enfoque inovador (e as inovações estilísticas não são mais do que um dos aspectos), ele precisa se valer, num ou noutro momento, de uma documentação de ordem histórica, história de um espírito, história das suas leituras, história social... Assim, tanto a teoria literária quanto a história da filosofia obrigam quem não optou pelo espírito de seita a honrar as prescrições metodológicas, que, frequentemente, só foram consideradas trivialidades por se ter uma idéia asseptisada do que deve ser "A Literatura" e a "Filosofia".

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