São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 1996
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Artes inauguram em fase 'pós-Aids'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Entram os inibidores de protease, sai o AZT. E as artes sofrem uma pequena revolução. Científica. Foi no Canadá, duas semanas atrás, mas a Aids já vinha com ares de mal crônico, e não fatal.
É cedo para falar. O vírus, que sumiu da corrente sanguínea -só da corrente sanguínea- dos pacientes citados no Canadá, pode voltar. E mudado, em supervírus.
Pode, mas o certo é que a Aids, que definiu a arte dos anos 90 até duas semanas atrás, já mudou.
O mal que marcou desde "Angels in America" até "Rent", no teatro americano, desde "Tutankaton" até "O Livro de Jó", no brasileiro, desde Robert Mapplethorpe até Nan Goldin, na fotografia americana, desde Jorge Guinle Filho até Leonilson, nas artes plásticas brasileiras, não é mais tema central para as artes.
Como a tuberculose -que se foi com a penicilina- ele deu a deixa para romantismo e religiosidade, mas está desaparecendo, até em menos tempo. Ou não.
Visões apocalípticas
"Sempre fico com receio de acreditar, receio do sensacionalismo", diz Antônio Araújo, diretor de "O Livro de Jó". "Mas tomara que achem a cura, até para a gente tratar de outros temas."
Em "Jó" a Aids foi "fundamental" ao falar da peste bíblica, mas a próxima, "com certeza", vai em outra direção. "A Aids até poderia estar, mas de outro modo."
Assim, ao fechar-se para decidir o que fazer, ele não vê mais Aids. "Diferente de quando estava para fazer 'Jó', eu sinto que outras questões estão mais fortes."
A imagem que ele leva, para uma temporada de trabalho em Nova York, é a "da virada para um outro século, das visões apocalípticas, a passagem, o portal".
Ficção autobiográfica
Jean-Claude Bernardet, escritor, autor de "A Doença, uma Experiência", acha arriscado falar em cura, "mas doença crônica é uma perspectiva possível".
Acredita, a partir daí, que vai seguir com seu projeto literário de "ficção autobiográfica", mas sem relação direta com a Aids.
"A Aids levou a certo adensamento da minha produção, e foi propício para radicalizar o projeto", mas "ele não tem, necessariamente, a ver com a Aids".
Ele acha que a mudança maior, se confirmada a perspectiva, é comportamental. Lembra a tuberculose, que "pouco a pouco a sociedade foi assimilando". Por outro lado, rindo, diz que "a sociedade vai encontrar outra vingança dos deuses contra a sexualidade".
Bernardet diz que "não tem resposta", para a mudança na relação Aids-arte, mas afirma estar "pensando bastante sobre isso".
Muito confessional
A crítica Lisette Lagnado foi a curadora da exposição de Leonilson em 1995, dois anos após sua morte.
Ela divide o impacto da Aids nas artes em duas fases, uma militante, outra, hoje, "existencial". Não chega a caracterizar Leonilson e a exposição. "Ela se tornou emblemática, referencial, mas não era a minha perspectiva." É que, "para ele, no fim da vida, era um espaço íntimo que se tornava público".
Uma das curadoras do projeto Antarctica Artes com a Folha, ela diz que uma marca deixada pelo período, presente nos trabalhos que vem avaliando, é que "é tudo muito confessional".
O crítico Arthur Nestrovski, professor da PUC-SP, compara a Aids com a tuberculose, o mal das artes no século passado, e ironiza. "Eu não acho que alguém tenha sido o Chopin da Aids."
Para ele, "a Aids na arte tem expressão mais marcada nos EUA", e responsabiliza as bolsas de criação. "A organização financeira da arte nos EUA sendo o que é, houve um surto." Com isso, "a Aids virou um gênero artístico, e há uma dose de manipulação da doença".

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