São Paulo, quinta-feira, 1 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lei britânica condena blasfêmia

TÂNIA MARQUES
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM LONDRES

A lei que criminaliza a blasfêmia na Grã-Bretanha está correndo perigo.
Dentro de um ou dois meses, a Corte Européia de Direitos Humanos divulgará a decisão do julgamento da ação que o cineasta Nigel Wingrove, 38, está movendo em função da proibição da distribuição de "Visions of Ecstasy" pelo British Board of Film Classification (Birô Britânico de Classificação de Filmes).
Mas esse não é o único tremor de terra ameaçando a censura britânica. No início deste ano, o Tribunal Superior de Londres determinou a revisão judicial dos procedimentos do BBFC, que no ano passado proibiu a distribuição de três fitas do selo Redemption, do mesmo Wingrove, entre elas a brasileira "Bare Behind Bars".
Na prática, isso significa que se assistirá, nos próximos meses, à abertura dos arquivos do BBFC para o escrutínio de seus métodos, absolutamente inédito desde a fundação da entidade, em 1912.
"Visions of Ecstasy", que retrata fantasias sexuais de Santa Tereza D'Avila, foi censurado por uma cena em que a protagonista se imagina lambendo as chagas do Cristo crucificado, que, no final da sequência, retribui com um beijo na boca.
Conforme a legislação, "considera-se blasfema qualquer publicação que contenha menções desdenhosas, insultuosas, indecentes ou jocosas a Deus, Jesus Cristo ou à Bíblia, ou ainda aos estatutos da Igreja Anglicana, estabelecidos na forma da lei".
A definição exime da acusação de blasfêmia a publicação de opiniões hostis ao Cristianismo e que afirmem descrença na existência de Deus. "O teste a ser aplicado diz respeito à maneira pela qual as doutrinas são defendidas, não às doutrinas em si mesmas", sustenta o texto legal.
Mediante a proibição, o cineasta recorreu, em 1989 mesmo, ao Video Appeals Committee (Comitê de Apelo à Classificação de Vídeos), uma entidade independente com função de reavaliar as decisões do BBFC.
Mas, segundo Paul Chinnery, advogado de Wingrove no caso, nem de longe o VAC se constitui como um órgão auto-regulamentador, nem como instância de representação de diversos segmentos da sociedade civil.
"O VAC funciona no prédio do BBFC, seu quadro de pessoal é o mesmo e seus membros são apontados por John Ferman, diretor do BBFC, de modo que sua independência é muito questionável", diz.
O escritor e jornalista Tom Dewe-Mathews, autor do livro "Censored: the Story of Film Censorship in Britain" (Censurado: História da Censura a Filmes na Grã-Bretanha), concorda. "Em seus cinco anos de existência, o VAC só fez confirmar as decisões do BBFC", afirma ele.
'Behind Bars'
A censura ao filme brasileiro "Bare Behind Bars" desencadeou um processo contra o organismo de classificação fílmica que agora trará a público seus procedimentos de trabalho, para verificar a possibilidade de má-interpretação da lei.
"Nós não desafiamos a decisão do BBFC, mas solicitamos acesso aos processos adotados pelo órgão", afirma o advogado Chinnery. Para Dewe-Mathews, trata-se de uma conquista de importância fundamental, porque "a censura britânica tem toda uma tradição de silêncio".
O escritor Salman Rushdie, que no final da década de 80 foi protegido pela polícia britânica contra ameaças de morte por parte de islamitas fundamentalistas, enviou declaração de apoio a Wingrove sustentando o absurdo de proteger todas as ideologias passíveis de se classificar como religiões e defendendo a discriminalização da blasfêmia no Reino Unido.
Essa parece mesmo ser a solução mais viável, se a corte decidir dar razão a Wingrove. Como efeito secundário, a condenação da censura ao filme tenderá a acirrar as críticas dos segmentos descontentes com a unificação européia, em um momento em que o boicote à carne bovina de procedência britânica coloca em pauta, para esses segmentos, a questão da soberania do Reino Unido.

Texto Anterior: Censura nas artes ensaia volta
Próximo Texto: CRONOLOGIA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.