São Paulo, quinta-feira, 1 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Medalhas para FHC

OTAVIO FRIAS FILHO

Por ter pago alguma taxa especial ou por ser, na prática, o Ministério da Informação e Propaganda, a TV Globo tem uma câmera oculta na concentração brasileira. Por razões também misteriosas, as imagens são descontínuas, como as que vêm do espaço sideral, de modo que vemos e ouvimos nossos atletas como se fossem astronautas presos numa cápsula.
A transmissão é difícil, a música nazificante de Atlanta se intromete, mas como nos shows cosmonáuticos o conteúdo é banal. Perguntas cretinas, as cobaias tentam dar respostas edificantes, sabendo que o verdadeiro jogo é esse, mas quase insultadas pela leviandade com que o mundo externo trata o terror, vitória ou derrota, que paira no ar.
Perguntada sobre o significado daquilo, uma das nossas heroínas diz que é positivo, pois agora mais garotas no Brasil passarão a se dedicar ao esporte X, o que no futuro poderá resultar em mais medalhas, o que é muito bom. De fato, qual o sentido do espírito olímpico, para que superar marcas ao preço, às vezes, da mutilação física?
Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros meios, as olimpíadas são como a continuação da guerra por meios inócuos: é preferível que uns poucos se estropiem nos estádios em vez de milhões nos campos de batalha. Daí o aspecto sinistro da honraria atribuída a Muhammad Ali na abertura dos jogos.
A dissolução dos blocos da Guerra Fria, a hegemonia nítida, mas não acachapante dos Estados Unidos, a aparição de países "oportunistas" como a Coréia e o próprio Brasil, as idéias correntes de globalização -tudo isso parece consagrar o espírito olímpico, dando a impressão de que também na competição esportiva o mundo está unificado.
Em certo sentido, o efeito é o contrário. Na época em que não havia chances, víamos ginástica, pentatlo, o que fosse, olimpicamente entediados. Quanto mais na periferia estávamos, mais éramos cidadãos do mundo. Mas agora cada país se concentra nas suas medalhas, todo estrangeiro passa a ser figurante, cada povo vive a sua olimpíada particular.
Para o governo FHC, os Jogos Olímpicos são uma metáfora. Dois terços da humanidade estão condenados sob as aparências do congraçamento. O terço restante disputa, em termos cada vez mais ferozes, as medalhas disponíveis. O desempenho brasileiro, pelo qual os atletas estão de parabéns, é uma cereja no bolo das nossas pretensões.
*
A apreensão judicial de um disco no Rio de Janeiro era o que faltava. Embora a música seja horrenda e o livro de Ruy Castro uma pesquisa séria, o caso é talvez mais grave que a interdição da biografia de Garrincha, pois a música não envolve pessoas. Há racismo, mas não pregação de preconceito. Revogaram a liberdade de expressão artística?

Texto Anterior: Epistemologia do mercado
Próximo Texto: GUERREIRAS; ANJO DA GUARDA; HÁ LIMITES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.