São Paulo, sexta-feira, 2 de agosto de 1996
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Gastronomia sai da cozinha

CELSO FIORAVANTE
DA REDAÇÃO

O professor de história e cultura italiana Piero Camporesi, 70, interessou-se pela cultura gastronômica a partir de 1969, quando organizou a edição crítica de "La Scienza in Cucina" (1891), de Pellegrino Artusi, até então apenas um manual de cozinha. Com a nova edição, ganhou dignidade de clássico.
Em 1978, escreveu "O País da Fome" e, em 1980, "O Pão Selvagem". "São livros em que a história e a literatura são interpretadas por meio da história da fome, da carestia, do vazio. É a história dos alimentos 'mundanos' com os quais o homem se alimentou entre os séculos 16 e 17. É a história do homem com o estômago vazio."
Em 1990, saiu na Itália este "Hedonismo e Exotismo", sobre as mudanças nos hábitos alimentares italianos e europeus durante o século 18 e o Iluminismo.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Bolonha, Camporesi falou sobre a revolução no comportamento causada na Itália pelas novas maneiras francesas.
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Folha - As mudanças nos hábitos gastronômicos no século 18, transcritas em "Hedonismo e Exotismo", significaram uma vitória da razão sobre a emoção?
Piero Camporesi - A mesa no século 18 é o sinal de uma mudança profunda no modo de olhar o mundo. É uma manifestação de uma organização diversa da razão, dos estilos de vida e das estruturas sociais. Sai-se do barroco para chegar a formas mais modernas de pensamento.
É uma etapa importante na modernização não apenas em chave iluminista, mas em chave de uma sociedade moderna, nova e "leve". Essa perda de peso da mesa é sinal de uma nova disciplina mental, de um novo gosto, que se reflete sobre a moda e os costumes.
Eu falo sempre das classes aristocráticas, que produzem as grandes mudanças, não dos miseráveis. Uma sociedade baseada na opulência e no desperdício dá lugar a uma sociedade baseada também em uma racionalidade do consumo.
Folha - O século 18 foi o mais importante para a gastronomia?
Camporesi - Foi um século de ruptura. Aquilo que hoje se chama a "modernização do gosto". Ainda hoje somos filhos das escolhas desse século, que rompem com o modo tradicional de se alimentar.
Podemos ver essa revolução do gosto no século 18 como um sinal de uma profunda mudança em relação às velhas maneiras da nobreza opulenta, sociedade dos gostos fortes. Exemplos: as carnes vermelhas, dos grandes animais selvagens, como javalis e cervos, são substituídas por peixes e ostras.
Os perfumes pungentes, masculinos são afastados em favor de um olfato mais delicado. Existe uma reestruturação dos gostos da sociedade que passa por essas novas categorias. É toda uma moda que se endereça a uma estética e ética do corpo muito modernas.
Folha - Essa nova cozinha francesa foi uma casualidade ou uma estratégia ligada à política expansionista francesa da época?
Camporesi - A França se torna o país piloto da Europa. Toda a Europa fala francês. O "settecento" é o século da supremacia francesa, país que dita as novas leis do gosto. Ela guia os outros países europeus.
Junto com seu exército armado, exporta também esses profissionais. É o sinal da invasão francesa não por meio das armas, mas por meio das mais pacíficas artes, da cozinha e da moda.
Folha - Mas eles também eram guerreiros. Lutavam por uma supremacia francesa, não?
Camporesi - Certamente. Junto com campanhas militares chegam os novos operadores da sociedade, aqueles que ditam as leis do gosto. A supremacia francesa se manifesta também por meio da moda, dos cortes de cabelos... Existe toda uma gestualidade nova na construção do homem "iluminado".
Além disso, falei da descoberta da noite. O tabu da noite foi quebrado pelo Iluminismo. O próprio nome já se refere às luzes. São as luzes dos salões franceses que rompem as tênebras da noite.
Acontece a descoberta da noite, o prazer de consumir o tempo por meio de longas conversas. O tempo da vida social também muda. O melhor de si, a sociedade dá nas horas noturnas.

LEIA MAIS sobre livros gastronômicos à pág. 5-6

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