São Paulo, sábado, 3 de agosto de 1996
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Música de Evgeny Kíssin transcende

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesses últimos anos, São Paulo tem sido abençoada com muitos bons concertos.
Mas depois do recital de Evgeny Kíssin, anteontem no Teatro Municipal, vamos ter de reconsiderar tudo. Se é isto um concerto, então os outros eram alguma outra coisa menor.
Para os aficionados, a música erudita é um dos últimos domínios da arte inteligente e, por isto mesmo, não deve ser contaminada de exibição, de virtuosismo -exceto quando este vem a serviço de uma verdade mais alta.
Mas o virtuosismo de Kíssin está noutro plano: a dificuldade, aqui, o desafio é (como dizia Liszt) "transcendental".
Manifestação muscular
É um estado sobre-humano de música, a manifestação muscular e sonora do que os românticos chamavam de estética do sublime.
No final do programa, Kíssin tocou três "Estudos Transcendentais" de Liszt com a fluência de um indivíduo possuído pelos deuses.
Não é mais humano fazer música assim, como bem sabiam Paganini e o próprio Liszt, que cultivavam associações diabólicas.
A energia de Kíssin parece não ter limite e ele foi capaz, sem esforço aparente, com um sorriso meio encabulado, de voltar ao palco para oferecer outra dose tripla (incluindo o "Moto perpetuo" de Weber) de bis.
Mas Kíssin não é apenas um menino prodígio que se transformou em superatleta da música.
Tocou a "Fantasia" de Schumann com o sentido mais fino de veladuras e contrastes e um senso de linha que é quase tão raro quanto a força de seus dedos e o fôlego.
Revelação
A reminiscência da canção "À Amada Distante" de Beethoven, no final do primeiro movimento -um fragmento que organiza toda a composição- caiu na sala com o peso de uma revelação, como uma memória involuntária, que explica, agora, tudo o que passou. Para tocar assim, é preciso bem mais do que dedos.
Também a sonata "Ao Luar", de Beethoven, é uma espécie de fantasia, mais estranha e ousada que se pode imaginar.
Lorenzo Mammì já nos ensinou como o primeiro movimento retrabalha a cena da morte do comendador, no "Don Giovanni" de Mozart (ver seu ensaio recente na antologia "Libertinos Libertários").
E Kíssin, de sua parte, nesta sonata, como no Schumann, nos ensinou, mais uma vez, mas como nenhuma vez, o que são as metamorfoses profundas da polifonia bachiana na música do romantismo.
Uma resposta justa à pressão de Bach sobre os românticos pode-se escutar na transcrição da "Chaconne" por Busoni, que serviu de abertura do concerto.
Kíssin tocou uma "Chaconne" alternativamente febril e lírica que, em retrospecto, parecia anunciar as felicidades melancólicas de Schumann e os exercícios de satanismo de Liszt.
Digno de espanto
Quando eu era pequeno, meu avô me contava que havia escutado um recital do jovem Arthur Rubinstein, no Municipal do Rio.
Tenho a impressão de que todos nós, que estivemos no Municipal quinta-feira, também vamos ter o que contar para os netos, daqui a alguns anos.
O mais impressionante de tudo era observar, no final, a grande caixa preta imóvel, e o sorriso estúpido das teclas, enquanto o pianista adolescente agradecia, sem jeito, a ovação.
Mistérios dignos de Henry James, e dignos do nosso espanto, e da nossa memória, pelo resto da vida.

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