São Paulo, sábado, 3 de agosto de 1996
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'Querência' vai na contramão dos mamonas e tiriricas da vida

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

A memória permite muita coisa. Constitui terreno privilegiado para que o espírito se entregue à tarefa de recriar o passado de maneira ampla, sem peias, numa espécie de remodelagem que com frequência apenas em parte tem a ver com os fatos a que se refere.
Rememorações são um mundo velho sem porteira em que o criador pode se esparramar, exercer sua autoridade, regalar-se. Desse processo podem surgir obras-primas. Outras não aspiram a tanto e fazem bem.
No caso de "Querência", peça baseada no trabalho do escritor Cornélio Pires (1884-1958), o narrador-personagem retorna à casa em ruínas de sua infância, numa curva do Tietê, chão de terra lavado pela chuva, junto do fogão, do avô rememorado, de seus medos, histórias e superstições.
Monólogo divertido e melancólico de 50 minutos, interpretado por Nelson Peres, "Querência" mantém o interesse justamente pela despretensão e simplicidade.
A cenografia no pequeno teatro da Aliança Francesa do Butantã é modesta, a iluminação também, mas o conjunto agrada, apoiado pelo correto desempenho técnico de Peres.
Ele se movimenta bem, e sua respiração, por exemplo, é desprovida daqueles "ahns" inspirados que tanto poluem os intervalos das falas longas de atores de mais renome.
Isso é mais relevante se se considera que é no apelo ao repositório anedótico e guerreiro criado pela tradição oral e na graça do falar caipira que a peça se apóia.
Aliás, os trechos dos textos de Cornélio Pires ganharam aqui e ali uma costura arbitrária e confusa. Apesar dessas limitações, que não prejudicam o todo, o espetáculo do diretor Roberto Lima ensaia associações ambiciosas.
Chega mesmo a roçar (sem trocadilho) culminâncias, como a encenação épica do embate entre o garimpeiro Chico Gabrié e o domador Zé Venâncio, a essa altura uma espécie de herói pesaroso, de cavaleiro da triste figura a vagar sedento de sangue e vingança pelas cidades do interior paulista, mineiro e goiano.
Sua grande perda, imenso vazio, jamais será reparada qualquer que seja o desfecho de sua tragédia pessoal.
Mesmo depois do combate, fica uma saudade, ou uma "sôdade", do tipo da que assola o personagem-narrador (interpretado por Peres, como todos os outros personagens) em relação à sua infância plena de histórias e significados, e que o leva a revisitar essa casinha "agachapada", irremediavelmente perdida no fundo do país e da sua memória.
Há um certo tom de pieguice, que poderia ser evitado, mas o resultado final satisfaz pela contenção. Trata-se de tentar saber que Brasil e que brasileiros são esses caipiras que parecem guardar as chaves de uma identidade confusa e irremediavelmente perdida em algum ponto da história.
O mérito de "Querência" (que significa "local de nascimento ou residência de uma pessoa") é o de abordar o tema do Brasil interiorano, na contramão tanto do comercialismo bregoso da maioria das duplas sertanejas como do suposto atrevimento dos mamonas e tiriricas da vida.

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