São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Intrigas políticas

Censura da era Vargas perseguiu poeta

VALÉRIA LAMEGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se a história da literatura desconhece a Cecília Meireles da luta política, desconhece também a que sofreu perseguições da censura de Vargas, dos católicos e em concursos literários.
O primeiro desencontro com Alceu Amoroso Lima se dá em 1929, quando Cecília concorre à vaga de professor de literatura brasileira pela Escola Normal. A jovem professora ainda não era a consagrada poetisa de "Viagem" (1939), "Vaga Música" (1942) e "Mar Absoluto" (1945), embora já fosse considerada pelos modernistas cariocas uma revelação, com seus livros "Espectros" (1919) e "Baladas para El-Rei" (1925).
Concorreu à pretendida vaga com a tese "O Espírito Vitorioso", um trabalho francamente liberal, no qual discorria sobre a liberdade individual na sociedade. E perdeu. Antônio Carlos Villaça, em "Tema e Voltas", é enfático: "Clóvis Monteiro derrotou Cecília, que sempre guardou tristeza de Alceu (Amoroso Lima) ter votado em seu adversário".
A contenda, até aí, poderia se resumir puramente a problemas de ordem pedagógica. Clóvis Monteiro era um técnico de educação sem qualquer pretensão literária. Sem dúvida, seu perfil, numa época em que a valorização da tecnocracia ganhava espaço, agradou muito mais do que o da jovem professora e poeta.
Passados cinco anos e todo o furor causado pela "Página de Educação", Cecília inaugura em 1934, junto com seu marido, o pintor Correia Dias, o Centro de Cultura Infantil, no "vazio e abandonado prédio" (nas palavras dela) do Pavilhão do Morisco, na praia de Botafogo, no Rio. Na administração de Anísio Teixeira, o centro reunia "mil e quinhentas inscrições de leitores".
Em 1937, em plena vigência do Estado Novo, o centro é invadido pelo interventor do Distrito Federal, que apreende de sua biblioteca "As Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain, por considerá-lo comunista. O caso teve repercussão internacional e nacional. No seu artigo "A Última Aventura de Tom Sawyer", o acadêmico Austregésilo de Athayde lamenta que o "New York Times" tenha denunciado ao mundo que, no Brasil, o clássico americano fora retirado das prateleiras de uma biblioteca infantil por ser considerado "material subversivo". Depois de invadido pela polícia, a prefeitura resolve fechar o Centro de Cultura Infantil e, em seu lugar, instala um posto de arrecadação fiscal.
A censura da academia
Mais escandaloso ainda foi o caso do prêmio de poesia promovido pela Academia Brasileira de Letras em 1938. Cecília Meireles, numa "estranha volúpia feminina", segundo palavras de Mário de Andrade, resolve se candidatar ao prêmio com o livro "Viagem". Com ela disputaram 28 obscuros candidatos.
Diante do disparate dos concorrentes, o relator da comissão do prêmio, Cassiano Ricardo, e os demais membros da comissão, Guilherme de Almeida e João Luso, resolvem atribuir um prêmio único a Cecília Meireles. Decisão que causa furor não só à imprensa, como ao acadêmico-médico Fernando de Magalhães.
A notícia ganha espaços nos jornais. O jornal nazista "Meio-Dia" publica uma reportagem com o título "Inconvenientes os Versos da Poetisa Cecília Meireles". A celeuma foi até mesmo estampada nas páginas da "Gazeta Policial".
O polêmico e conservador crítico Carlos Maul, autor do hilário "A Glória Escandalosa de Heitor Villa-Lobos" jogou todas as suas cartas no livro "Pororoca", do amazonense Vladimir Emmanuel, já que a poesia de "Viagem", segundo ele, era "vaga e difusa".
Cassiano Ricardo, no entanto, vaticinou: "Quando o uirapuru canta todos os outros pássaros silenciam". Para amenizar os ânimos, decidiu-se dar o primeiro prêmio para "Viagem", não por unanimidade, pois mais uma vez Alceu Amoroso Lima fora voto contra, ao lado de Fernando de Magalhães. E o segundo prêmio acabou nas mãos de Emmanuel.
Escolhida para discursar na entrega dos prêmios, Cecília se viu de novo enredada na malha da política. Seu discurso foi aceito somente após uma minuciosa leitura dos acadêmicos Levi Carneiro e Oswaldo Orico. A censura levou Cecília a recusar-se a ler o texto na cerimônia. E mais uma vez a Academia Brasileira de Letras ficou na lanterninha da história.
(Valeria Lamego)

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