São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Direitos humanos são só relativos?

HÉLIO BICUDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O sr. Nelson Ascher, da equipe de articulistas da Folha, na edição desse jornal de 21 de julho do corrente ano, faz uma análise preconceituosa de posições políticas por mim adotadas, no desempenho de meu mandato de deputado federal, que não acalenta eleitoralismo, mas pretende desenvolver-se na procura do bem comum.
Tão preconceituosas que, no universo em que fé e religião são consideradas como que fora da realidade, vale dizer, utópicas, busca qualificar a luta contra a cultura da morte, que vem ali enaltecida, como uma questão de fé e religião, a ser resolvida ao largo da concepção de um estado secular e laico. É, pelo menos, ignorar que desse estado secular e laico não se pode excluir fé e religião. É uma maneira primária de desqualificar argumentos, na linha de uma estrutura darwinista da sociedade.
Tenho plena consciência do quanto é difícil argumentar contra idéias preconcebidas que se derramam em frases de efeito, entretanto, sem maior conteúdo, atribuindo certezas àquilo que deveria ser apenas indagações ou especulações. Será, por exemplo, que os católicos estão longe do socialismo, considerado como a corrente de pensamento que pode permitir maior igualdade e liberdade? As comunidades dos primeiros cristãos não se caracterizavam pela mais profunda igualdade, na solidariedade e comunhão de suas vidas?
Na verdade, quando se afirma -e isto é inconteste diante de documentos elaborados no Departamento de Estado dos Estados Unidos da América- que os países ricos não vêem com bons olhos o crescimento demográfico dos países pobres, isto acontece justamente porque a superpopulação destes últimos pode interferir na qualidade de vida dos países ricos. Não é, assim, legítima a conclusão de que se está pondo em tela o que o articulista chama de "jogo do inimigo, ou seja, dos EUA". A questão é muito mais profunda, porque trata-se não apenas de um pretendido confronto com os Estados Unidos da América, mas de um confronto impossível de ser negado entre os ricos dos países ricos e dos países pobres com os pobres de todo o mundo. É como se dissesse, parodiando Marx: ricos de todo o mundo, uni-vos.
Crime contra a humanidade
Não percebe, a propósito, o articulista, que ainda nessa hipótese, joga-se com os direitos das pessoas para atingir questões que vão além das pessoas enquanto tais, porque se situam no nível de interesses de minorias que querem a permanência, enquanto for possível, do atual statu quo: a concentração de renda de um lado, e, de outro, o alargamento das pautas de miséria.
Aliás, ao pontificar sobre o que chama "princípios abstratos", declara que os princípios religiosos, numa república secular e laica, não deveriam interferir na esfera pública. Permita-nos indagar por quê? Afinal, num estado laico, mas democrático, idéias, pelo simples fato de guardarem qualificativos de religiosidade e de fé, não devem ser consideradas, mas, de plano, rejeitadas? Assim, sobre a questão da vida, o sr. Nelson Ascher confunde igreja com hierarquia, pois, se buscasse informações sobre o pensamento da igreja, que alcança o chamado "povo de Deus" e do qual a hierarquia é apenas parcela menor, iria verificar que a defesa da vida -e não se trata da qualificação pretendida a partir do instante em que o amontoado de células passa a ter direitos- tem em vista o processo da vida, que não é ainda a vida inteligente, mas que vai lhe dar corpo e personalidade. Cortar esse processo, que só se extingue com a morte, é atuar contra a vida e cometer crime contra a humanidade. No tribunal de Nuremberg, considerou-se a extinção de milhões de seres humanos crime contra a humanidade. Em que ficamos, com cerca de 30 milhões de interrupções da vida humana em apenas um ano?
Não se trata aqui de se ter ou não uma alma, ou quando ela surge. E nem se cuida de dogma, antigo ou recente. O relevante é que o processo que se chama vida não seja interrompido por quem não tem o poder de fazê-lo. Nada mais do que isso.
O discurso do articulista chega próximo ao delírio da paixão. A igreja, por meio de sua mensagem evangélica, não profliga o prazer, mas não pode concordar com o prazer enquanto apenas prazer, porque objetiva uma sociedade que não se assente na filosofia hedônica, tendo o prazer como seu fim último, mas aspira a uma sociedade na qual prosperem, com a solidariedade, a justiça e a paz. E, acrescente-se, prazer, para a igreja, não se circunscreve, como parece pensar o articulista, ao prazer sexual. E sim que os filhos são uma bênção e não um castigo, como, sem dúvida, pensam aqueles que pregam a esterilização e o aborto.
Ato de amor
A questão merece maior reflexão quando se refere à vida sexual do casal. Na encíclica "Populorum Progressio", o papa Paulo 6º aborda o tema "planejamento familiar", apontando para a chamada paternidade responsável, quando assevera que "em última instância é aos pais que compete determinar, com pleno conhecimento de causa, o número de filhos" (pág. 37). Isto importa em que os documentos da igreja, mormente quando o Sumo Pontífice fala em suas encíclicas, não têm qualquer restrição à prática, pelos casais -como insinua o articulista- do ato sexual sem o consequente da procriação. Como se vê, e já foi salientado, a igreja não é contrária ao prazer ou à alegria de dois seres humanos que se unem, pura e simplesmente, num ato de amor. E tanto é verdade, que propõe uma política de planejamento familiar, o que importa em evitar a gestação. Desde, é evidente, que o ato sexual não seja mera expressão do hedonismo: o prazer pelo prazer.
Dizer-se, ademais, que direitos humanos e uma religião que os busca e promove não se misturam é, insista-se, concordar com iniquidades praticadas a pretexto de credos religiosos ou políticos. Lembre-se o articulista que foi a igreja, não no conceito estreito por ele pretendido, que mais abertamente lutou contra a opressão em que as contradições Leste-Oeste mergulharam a América Latina. Foi em Puebla que, pela primeira vez, levantaram-se vozes do episcopado latino-americano contra a ideologia da segurança nacional, hoje travestida na segurança populacional, defendida no Relatório Kissinger. Em São Paulo, a voz que primeiro se ergueu contra a violência da ditadura da ideologia da segurança nacional foi a de seu cardeal arcebispo, d. Paulo Evaristo.
Acrescente-se, ainda, que ninguém nega aos homossexuais o exercício de seus direitos, enquanto pessoas humanas que são. Esses direitos podem e devem ser livremente exercidos e os interesses deles decorrentes encontram socorro adequado nas leis que regulam relações, direitos e deveres inscritos nas leis civis ordinárias e extravagantes. Discriminam-os, em verdade, quantos os identificam com o pejorativo de "minorias" e assim pretendem considerar problemas que não são apenas de uma opção, mas de toda a sociedade, na proteção da pessoa humana.
Por fim, não é porque a arrogância dos homens que se querem opor ao ato criador pode ser tão abrangente, a ponto de dominar a redação das leis, que a esterilização não continua sendo uma atitude contra a vida e, bem assim, o seu complemento, que são o aborto e a eutanásia.
Agora, querer afirmar que os direitos humanos são apenas humanos, como se a dizer que são apenas relativos, é optar pela vitória da cultura da morte que vem envenenando a comunidade dos homens.

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