São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Felicia Leirner gerou formas que são vida

FABIO MAGALHÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Felicia Leirner foi a matriarca de uma bem-sucedida família de intelectuais, de colecionadores de arte e de artistas plásticos, que se destacou e ainda se destaca no panorama cultural brasileiro. Pode-se ainda afirmar sem exagero que os Leirner marcaram as artes plásticas em nosso país nessa segunda metade do século.
Começou seu aprendizado de escultora em 1948, quando já tinha mais de 40 anos de idade, no ateliê de Brecheret, instalado desde 1937 num barracão no próprio canteiro de obras onde construía o Monumento às Bandeiras no Parque do Ibirapuera e que só seria inaugurado em 1953.
Lá, Felicia praticou suas primeiras lições. "Com Brecheret aprendi a técnica da escultura, como construir a base de uma peça, a armação, enfim, todas aquelas coisas que a gente tem que esquecer quando quer criar livremente."
Naqueles anos, a vida cultural da cidade de São Paulo era efervescente. O Masp e o MAM estavam recém-inaugurados e abria-se um contato permanente com os mais recentes movimentos artísticos internacionais, até então desconhecidos pelos artistas paulistanos.
Em 1951, cria-se a Bienal de São Paulo e a cidade sonha em transformar-se num grande centro artístico capaz de aglutinar artistas de todas as tendências e de todo o mundo.
Esse ambiente rico em informações estéticas, principalmente a partir das Bienais, influenciou a bem-informada Felicia muito mais que o seu primeiro mestre. Brecheret lhe deu o instrumento da escultura, e Moore, Manzu, Chadwwick, Marini, Giacometti lhe deram as asas para a aventura das formas no espaço.
Ainda assim, apesar de integrada às correntes internacionais, ela não seguiu o caminho de nenhum desses mestres. Deles soube retirar o espírito transformador daqueles anos e, com poder de síntese, ela captou o essencial das mudanças de forma e conceito que ocorriam na escultura nos anos 50.
Agora, diz ela, a obra sai "de mim para mim". A preocupação com o realismo na figuração dos primeiros trabalhos vai, aos poucos, cedendo lugar para o imaginário e para o simbólico. A imensa força afetiva e até mesmo mística de Felicia impregnará de energia toda a sua obra.
Em poucos anos, sua escultura disputava enorme interesse por parte da crítica de arte e seus trabalhos já estão presentes na 2ª Bienal de São Paulo em 1953. A partir de então participou da 3ª, 5ª, 6ª e 7ª Bienais, nesta recebendo prêmio de melhor escultor nacional, e nas 8ª e 9ª Bienais teve sala especial.
Segundo o crítico Mário Pedrosa, "Felicia Leirner, escultora, é uma legítima floração da semeadura das nossas bienais". Aliás, é difícil encontrar naquela geração artística alguém que tenha escapado das influências das Bienais, mas também é verdade que poucos estão tão vinculados à Bienal de São Paulo quanto Felicia.
O tema da geração da vida é central na sua obra e está presente nas diversas fases da sua escultura. Talvez a única exceção seja a fase das "Cruzes", desenvolvida logo após a morte de Isai, seu marido.
Frederico Moraes, que publicou um livro sobre Felicia, dedica um capítulo ao "arquétipo da mãe" e, ao analisar a obra "Maternidade", de 1957/1958, compara com o tema mitológico de Dafne e faz analogias simbólicas com a árvore. É a árvore da vida, diz Frederico.
Associado ao tema da maternidade, virão os abrigos, esculturas e quase arquiteturas, de cimento branco. Nesta fase, o elemento orgânico é dominante e contraria o caráter geométrico das "Cruzes". Nas "Estruturações", fase intermediária, os elementos geométricos já convivem com forças orgânicas, mantendo, entretanto, semelhança de ritmo com as "Cruzes".
Já no "Habitáculos", como chamou José Geraldo Vieira, o orgânico tem espírito barroco, e o espaço interno quase impenetrável cria um jogo de luz e sombra, um jogo de formas que se ocultam e se revelam, e sugerem analogias com conceitos de espaço sagrado e profano.
Sua última fase, os recortes da paisagem, são esculturas feitas para intervirem na paisagem e, nesta fase, como nos "Habitáculos", sente-se sua total integração com as montanhas de Campos do Jordão, paisagem que fascinou tantos artistas, como Segall e Pancetti.
Hoje, visitar o museu Felicia Leirner em Campos do Jordão e percorrer no meio da paisagem montanhosa, de grandes horizontes, as diversas fases de sua escultura é uma experiência enriquecedora. Felicia cumpriu sua missão de gerar formas que são, muitas vezes, a própria essência da vida.

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