São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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A poeta vai à guerra

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem se acostumou à "vaga música" dos poemas de Cecília Meireles (1901-64) e à sua imagem cândida de professorinha do Brasil vai conhecer agora uma outra face da escritora.
Conforme mostra a pesquisadora Valeria Lamego, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no artigo à pág. 5-5 desta edição e no livro "A Farpa na Lira", que a Record vai lançar em novembro, Cecília foi, sobretudo nos anos 30, uma guerreira que não hesitou em desafiar o ditador Getúlio Vargas e o líder intelectual católico Alceu Amoroso Lima para defender um projeto democrático e moderno de educação para o país.
O estudo, que analisou os artigos publicados na imprensa por Cecília, aparece num momento de febril redescoberta da escritora pelo mercado editorial.
A Nova Fronteira está lançando na Bienal do Livro de São Paulo duas preciosidades inéditas da autora: o longo poema "Oratório de Santa Maria Egipcíaca" (leia trecho nesta página) e os "Poemas Chineses", versões de Cecília para obras de Li Po (701-62) e Tu Fu (712-70). Estão sendo reeditados também os poemas infantis de "Festa de Letras".
Até o final do ano a Nova Fronteira lança outro inédito, "Cecília e Mário", que inclui uma antologia da obra de Mário de Andrade organizada por Cecília, acompanhada de um estudo da escritora sobre o autor paulista e de parte da correspondência entre os dois.
O grosso da prosa inédita da autora fica para 1997, quando deverão ser publicados seus artigos sobre educação e boa parte de suas crônicas de jornal, além de conferências e cadernos de viagem.
O conjunto dessas publicações revela uma Cecília Meireles multifacetada, intelectualmente inquieta e militante. Uma espécie de Mário de Andrade de saias, interessada por folclore, música, educação, política e viagens. Também para 1997 deverão ficar o primeiro livro de poemas de Cecília, "Espectros" (1919), que ela não quis incluir em sua "Poesia Completa", e o último, "Solombra" (1963).
À frente dessa intensa atividade de resgate da obra e da memória de Cecília está sua filha mais nova, a atriz Maria Fernanda. Ela passou a cuidar diretamente dos ricos e desorganizados arquivos de Cecília há uns dez anos, quando morreu o crítico e pesquisador Darcy Damasceno, até então uma espécie de curador informal do acervo.
"Darcy fez um trabalho maravilhoso, sobretudo na organização da poesia completa de Cecília", disse Maria Fernanda à Folha. "Ficou faltando a prosa, que estamos organizando agora."
O "Oratório de Santa Maria Egipcíaca" e os "Poemas Chineses" estão sendo publicados 32 anos depois da morte de Cecília. Maria Fernanda atribui essa demora às dúvidas e aos escrúpulos que imobilizaram a família durante muitos anos. "Como ela não os tinha publicado em vida, não sabíamos se devíamos fazê-lo. Carlos Drummond de Andrade me disse, uma vez: 'Publiquem tudo que for poesia de Cecília'. Só agora vamos fazer isso."
Segundo Maria Fernanda, está bastante avançado o trabalho de organização do acervo deixado por sua mãe, que inclui uma extensa correspondência e uma biblioteca de 10 mil volumes, muitos deles anotados pela autora.
"Nosso objetivo é, futuramente, transformar esse arquivo num centro de cultura e pesquisa. Para isso, estamos em busca de patrocínio", diz a atriz.
A publicação de inéditos e o relançamento de textos pouco conhecidos tornam mais premente a necessidade de um estudo crítico aprofundado da obra de Cecília Meireles.
Autora de uma poesia que partiu do pós-simbolismo e da herança do lirismo português para, à margem da facção mais ruidosa do modernismo, construir uma dicção personalíssima, Cecília segue sendo um desafio para a crítica.
Amada pelo público (é a poeta brasileira mais lida, depois de Drummond e Vinícius) e admirada por colegas de ofício do porte de Bandeira, Drummond e até de seu antípoda João Cabral, Cecília Meireles só contou até agora praticamente com um único autor de estudos de fôlego sobre sua obra, Darcy Damasceno -e isso foi nos anos 50.
Para o crítico e ensaísta Davi Arrigucci Jr., professor de literatura da USP, "é preciso que alguém escreva um livro importante sobre Cecília". "Ela era uma poeta altamente técnica, uma grande artista do verso. Um estudo sobre ela deverá enfrentar o tema da relação entre o limite e o ilimitado na sua poesia."
Para o poeta, crítico e tradutor Décio Pignatari, a Cecília Meireles mais interessante é a de "Viagem" (1939) e "Vaga Música" (1942). "Eu gostava de uma certa lírica contida dela, daquela música bonita, sensível, música de câmara", diz Pignatari. "A poesia que ela procurou fazer depois, com pretensões mais amplas, para um público maior, deixou de me interessar. Do 'Romanceiro da Inconfidência' eu não gosto nada."
Para Valeria Lamego, o desconcerto da crítica diante da obra de Cecília Meireles deve-se ao fato de ela ter sido uma modernista atípica. "Ela não tem nada a ver com o modernismo pontual, com o nacionalismo que marcou os modernistas. No entanto, ela dizia: 'Eu canto porque o instante existe'. Pode haver algo mais moderno que o instante?".
Seus metros são, no mais das vezes, os tradicionais: redondilha menor e maior, decassílabo, alexandrino etc. Em todos eles mostrou absoluto domínio técnico e originalidade de expressão.
Extremamente musical, com suas metáforas fortemente sensoriais (herança impressionista, segundo Arrigucci) e sua insistência no uso da primeira pessoa, Cecília Meireles parece ter cantado sempre o mesmo tema: a busca do eterno no transitório, do transcendente no contingente, do milênio no minuto.
Num poema de "Vaga Música", Cecília pergunta: "Coisa que passa, como é teu nome?". Sua poesia pode ser lida como o anseio infinito e vão de encontrar esse nome.

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