São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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A bolsa ou a vida

FÁBIO KONDER COMPARATO

Wall Street entrou em pânico. No início de julho, as estatísticas oficiais mostraram que o desemprego atingira nos Estados Unidos o seu mais baixo nível desde o começo da década, enquanto os salários horários haviam aumentado, em média, 0,8% em um mês, fato que não ocorria desde os anos 60.
No dia seguinte ao anúncio dessas cifras inquietantes, o índice Dow Jones caiu 2%, embora a sessão da Bolsa de Nova York tenha sido encurtada em três horas. As bolsas de Londres, Paris e Tóquio acusaram imediatamente a baixa.
A ironia dos fatos é desconcertante. Após tantos anos de pregação liberal-modernista, apimentada com os habituais sarcasmos sobre o caráter jurássico do "welfare state", o capitalismo dominante volta aos padrões de conduta da primeira metade do século 19, inspiradores do Manifesto Comunista.
Agora, como naquela época, as palavras de ordem são reduzir salários, aumentar a jornada de trabalho, despedir empregados e contratar no mercado informal. Qualquer melhoria no padrão de vida dos trabalhadores representa um risco mortal para as aplicações financeiras.
No conflito entre os assalariados, empresários e consumidores, de um lado, os bancos e os capitalistas, de outro, os governos neoliberais não hesitam em favorecer estes em detrimento daqueles. Objetivo da estabilidade monetária não é proteger o trabalhador, mas garantir os rendimentos financeiros e o lucro especulativo.
Não é preciso grande esforço de análise para perceber que essa política antidemocrática e anti-social viola frontalmente a Constituição brasileira, razão pela qual só se pensa em reformá-la. Nas declarações solenes do seu preâmbulo, bem como nas normas dos artigos 1º, 3º e 170, a justiça social, a livre iniciativa empresarial e a valorização do trabalho são postas acima da defesa dos interesses de investidores e proprietários.
Mas, lamentavelmente, a técnica jurídica, que soube criar o juízo de inconstitucionalidade das leis e atos do Poder Executivo na época decisiva de passagem do Estado absolutista para o Estado de Direito, é agora incapaz de criar um análogo juízo de inconstitucionalidade de programas de governo que conduzem à destruição dos grandes valores e instituições da democracia solidária.
Dir-se-á que isso inviabilizaria o sistema capitalista, que demonstrou, apesar de tudo, ser o mais eficiente de todos. Mas que eficiência é essa que provoca a marginalização crescente das massas e a desintegração social?
Que ganhos de produtividade são esses, que só se realizam à custa do assalariado e do aposentado? Os Estados Unidos, desde a era Reagan, malgrado o moderado crescimento econômico e um relativo sucesso na criação de empregos, é o país que conhece a mais elevada progressão na taxa de desigualdade de renda nos últimos anos, como registra o mais recente relatório da ONU sobre o desenvolvimento social.
No mundo subdesenvolvido, mais precisamente em Gana -o atual primeiro da classe na escola do Banco Mundial e do FMI (o anterior aluno modelo, como se sabe, era o México do presidente Salinas)-, não há nenhuma esperança de melhoria de nível de vida para a população pobre nos próximos 30 anos, como reconhece a insuspeita revista "The Economist".
Como é possível não sentir o caráter profundamente imoral de uma política econômica que multiplica os bolsões de miséria, engendra a desesperança dos jovens e o desespero dos velhos em nome do equilíbrio orçamentário e da estabilidade da moeda?
O que Jesus de Nazaré disse do sábado, perante o radicalismo ritualista dos fariseus, deve ser dito e repetido hoje, perante a insânia argentária do liberalismo dominante: a moeda foi feita para o homem, não o homem para a moeda.

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