São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Olimpíada libera infantilismo coletivo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já passava das duas da madrugada de terça-feira e o "Apito Final" da Rede Bandeirantes corria solto, embalado pela euforia da vitória do vôlei masculino sobre a seleção cubana. Incontidos, os apresentadores do programa, todos marmanjões, lembravam mais escoteiros, devidamente uniformizados e enfileirados diante das câmeras, chacoalhando nas cadeiras, como se o estúdio se visse transformado num acampamento infantil. Só faltavam as lancheiras.
Armando Nogueira ensaiou alguns versinhos parnasianos sobre o vento, a vela e o mar para saudar o ouro do iatismo. Tudo já soava suficientemente ridículo para quem se preparava para ir dormir, mas o líder da "meninada" não deixou por menos. Fez mais uma das suas.
Com a habitual potência de sua voz e sua empostação alegre e afirmativa, própria de quem nunca teve uma dúvida, Luciano do Valle disse, referindo-se ao Brasil: "Hoje eu vi um faixa que dizia 'gigante pela própria natureza'. Que maravilha. Parece que estamos acordando de um pesadelo e começando a sonhar".
O exemplo, escolhido meio arbitrariamente, é só um entre milhares que se acumulam nas várias emissoras desde que começaram os Jogos Olímpicos de Atlanta. Nem seria o caso de comentar aquilo que outros já chamaram de delírio ufanista, patriotada e coisas do gênero.
Ocorre que, mais do que este constrangedor nacionalismo por encomenda, o que a transmissão televisiva da Olimpíada parece ter liberado é uma onda de infantilismo coletivo sem precedentes, como se os jogos fossem um pretexto para romper uma energia ou uma demanda social há muito represada.
Sim, podemos todos ter seis anos de idade, podemos todos assumir nossa vocação para a molecagem, para a malandragem, o lado lúdico, intuitivo, irracional -tudo enfim que nos remete à velha e surrada idéia de brasilidade. É a isso que nos incentivam aqueles senhores da TV que se transformam em crianças enfurecidas cada vez que o Brasil entra em campo.
Consumidor olímpico
Não é novidade para ninguém que, para o bem e para o mal, o esporte é uma espécie de ritualização de instintos agressivos e narcísicos. O culto ao corpo e a vontade de dobrar e esmagar o adversário são legitimados pelos códigos da prática esportiva.
Ninguém ignora também que a construção da nacionalidade, no caso do Brasil, está mais ligada à monumentalidade (o gigante pela própria natureza), ao Carnaval e ao futebol do que a qualquer sentido ou evento histórico capaz de unir passado e presente.
Sendo assim, entende-se porque a Olimpíada seja um momento privilegiado para que a TV, motivada por milhões de dólares, explore essa ilusão infantil de afirmação nacional.
Seria o caso de se dedicar um capítulo à parte ao papel da propaganda e dos patrocinadores do evento nesse processo de demência coletiva. A última moda é atazanar o torcedor olímpico com a promessa de que, ligando para o telefone tal por apenas três reais, ele vai dormir mais feliz, com o carro do ano na garagem.
Isso cheira, no mínimo, a propaganda enganosa. É estranho que o governo tucano, o grande defensor do consumidor (a maneira dos liberais de se referir ao cidadão), não tenha se pronunciado sobre os direitos do consumidor olímpico.

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