São Paulo, segunda-feira, 5 de agosto de 1996
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Cade deve deixar preços de lado, diz norte-americano

DANIELA FALCÃO; ALEX RIBEIRO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não deve perder tempo controlando aumentos abusivos de preços. Sua meta principal deve ser a de punir as empresas que tentam evitar a competição no mercado brasileiro.
A opinião é do norte-americano Russell Pittman, chefe de Política de Competição da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Nos últimos meses, o Cade apreciou diversas questões relacionadas ao controle de preços considerados abusivos. Entre as mais polêmicas estiveram a da questão das mensalidades escolares, dos planos de saúde e dos medicamentos, por exemplo.
Pittman veio ao Brasil, a convite do Cade, para expor a experiência dos Estados Unidos no combate aos inimigos da livre concorrência. Em entrevista exclusiva à Folha, afirmou que o controle de preços "é muito esforço para poucos resultados".
O economista disse também que o Cade precisa receber mais apoio do governo federal para cumprir as suas funções adequadamente. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Folha.
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Folha - O Cade vem sendo requisitado para punir aumentos abusivos de planos de saúde, combustíveis e remédios. Existe essa vigilância nos Estados Unidos?
Russel Pittman - O aumento abusivo não é considerado ofensa às leis antitruste nos Estados Unidos. Mas o Brasil não está sozinho. A maioria dos países tem leis para punir o aumento abusivo, inclusive a União Européia. Mas as leis não são muito usadas, porque é muito difícil determinar se os reajustes foram abusivos. É complicadíssimo determinar o preço correto de uma mercadoria. Há maneiras de se fazer isso, mas se perde muito dinheiro. Uma agência pequena como o Cade não deveria perder tempo punindo abuso de preços.
Folha - O sr. não acha que o Brasil vive um momento em que é preciso exercer algum controle sobre os preços?
Pittman - Se o Cade estimular a concorrência, gradualmente haverá menos mercados em que os preços precisem ser controlados. Concordo que a situação do Brasil é muito diferente. A população está implorando por proteção, porque a desregulamentação ainda é novidade. Talvez o Cade precise gastar algum tempo analisando aumentos de preços, mas deve concentrar-se no incentivo à competição.
Folha - O sr. poderia dar um exemplo de como incentivar a competição?
Pittman - Punindo empresas que afastam novos concorrentes do mercado. Como as fabricantes de cerveja que fecham contratos exclusivos com as distribuidoras e terminam impedindo a entrada de empresas novas ou estrangeiras. Se o Cade perder muito tempo controlando o abuso de preços, vai acabar virando um órgão regulador. Essa não é sua função. Não sou seguidor do pensamento da Escola de Chicago, que acha que todo o tipo de controle de preços é algo maligno. Estou dizendo é que isso não deve ser o foco do Cade.
Folha - O Cade não tem poder de polícia e depende da atuação da Justiça, que é morosa no Brasil. Nos Estados Unidos há o mesmo problema?
Pittman - O Departamento de Justiça norte-americano, onde eu trabalho, só tem o poder de um promotor. Não damos o veredicto. Apenas investigamos, levamos os acusados à corte e torcemos para que o júri os considere culpados e dê punição justa. O único poder que temos é o de negociar com os acusados.
Folha - No Brasil é difícil provar a formação de cartel. Nos Estados Unidos também existe essa mesma dificuldade?
Pittman - Nos Estados Unidos, a formação de cartel é punida criminalmente. São muito poucos os países nos quais o cartel é crime previsto na Constituição. Quando levamos uma acusação de cartel à corte, quem dá o veredicto é um júri popular. Nosso trabalho é convencê-lo de que os acusados tinham um acordo. Não é fácil, porque quase nunca há provas, mas apenas evidências. Depois de mais de cem anos de experiência, os empresários que montam um cartel já são espertos o suficiente para não escrever nada, não deixar provas.
Folha - Como é o trabalho de recolher evidências?
Pittman - A melhor estratégia é convencer um membro do cartel a ser testemunha do nosso lado. Ele confirma a formação do cartel e, em troca, se livra da punição. A testemunha diz quando os envolvidos se encontraram, o que discutiram, nos dá alguns documentos. Mas ainda assim precisamos torcer para que os jurados se sintam convencidos da nossa argumentação.
Folha - Os srs. têm conseguido bons resultados?
Pittman - Na maioria das vezes, sim. A cada ano, entre 40 e 50 empresários vão para atrás das grades acusados de formação de cartel.
Folha - A pena é grande?
Pittman - A punição é dura. Varia de uma semana a seis meses. Mas a média é de um a dois meses. Os empresários também têm de pagar uma multa. Além disso, os consumidores podem processar os envolvidos para reembolso. E a lei americana prevê que eles recebam três vezes o valor do prejuízo.
Folha - Os Estados Unidos são conhecidos como o país em que a competição de mercado deu certo. O país tem muito a ensinar?
Russell Pittman - A experiência norte-americana e a experiência ocidental mostram que dá para confiar na competição como agente regulador do mercado. Hoje já é consenso que a interferência do Estado deve ser substituída pela livre concorrência. Mesmo os mercados que nós acreditávamos que precisavam ser regulados, como telecomunicações e eletricidade, já estão caminhando em direção à desregulamentação. Isso já acontece no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Folha - O que um país como o Brasil ganha com a desregulamentação dos mercados?
Pittman - Todos ganham. O governo pode se ver livre de centenas de burocratas. As empresas são obrigadas a descobrir novas idéias para sobreviver. A lição geral que os Estados Unidos podem dar é que a livre concorrência dá certo.
Folha - O sr. acha que a abertura da economia brasileira está sendo bem-conduzida?
Pittman - Sei que o presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, tem um programa que prevê a desregulamentação de vários setores. Isso é parte de uma tendência mundial: acabar com boa parte dos mercados hiper-regulados e deixar a concorrência fazer seu trabalho.
Folha - A população brasileira ainda vê com alguma desconfiança a desregulamentação. O sr. acha que esse temor é improcedente?
Pittman - Acho que a preocupação da população brasileira é bem fundamentada, porque a desregulamentação tem de ser feita da maneira correta. Se você vive num país em que o mercado sempre foi controlado com rigor pelo governo, a quebra pura e simples do monopólio pode não trazer benefícios. Na verdade, pode até trazer prejuízos, caso se substitua o monopólio público pelo privado.
Folha - O sr. acha que o Brasil está indo no caminho certo?
Pittman - Acho que dá para dizer que sim. Para a abertura do mercado brasileiro dar certo, a atuação do Cade será de fundamental importância. Eu sei que o governo brasileiro tem limitações financeiras, mas todos os governos têm. Pessoalmente, acho que o Cade é muito pequeno para as responsabilidades que tem. Para um país com a extensão territorial do Brasil e com uma economia do porte que tem, o Cade deveria receber mais recursos para cumprir seus fins, que são os de proteger a integridade da Constituição e do mercado.
Folha - O que o sr. acha da fusão entre a Colgate e a Kolynos? Arrisca algum palpite?
Pittman - A SDE (Secretaria de Direito Econômico) e o Cade devem estar examinando essa questão agora. É uma decisão muito difícil. Mas acompanhei o trabalho do Cade e fiquei impressionado com o nível dos técnicos. Não deixam nada a dever aos especialistas dos Estados Unidos. Fiquei muito impressionado, porque o Cade é uma agência nova. Tenho confiança que o Cade vai investigar a fusão da Kolynos com a Colgate com justiça e com grande capacidade. Só não sei qual será o resultado.

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