São Paulo, segunda-feira, 5 de agosto de 1996
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'Jorge Amado' reafirma o país cordial e mestiço

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

É pena que "Jorge Amado", o documentário independente de João Moreira Salles, tenha ido ao ar sem muito alarde ontem à noite na GNT. Em tempos de revisão da história do Brasil, esquerda, racismo e censura, o escritor baiano reafirma o país cordial e mestiço.
Jorge Amado defende o caráter popular da revolução de 30 de Getúlio Vargas, fala das "excrescências" stalinistas nas suas obras da fase comunista, define ideologia como "uma merda", mas reafirma sua postura engajada na luta por uma sociedade sem racismo e injustiça social.
Na linha de Gilberto Freyre, o escritor se orgulha do Brasil sincrético. Resgata com carinho a simbiose entre o coronel e o jagunço. Saúda a heterodoxia da mistura de raças, religiões e culturas. Defende a colonização portuguesa, supostamente menos violenta que a espanhola. E, com isso, explica a estranha confraternização que vigora na Bahia.
Pierre Verger, Gilberto Gil, Antonio Carlos Magalhães, Carybé, João Ubaldo Ribeiro, amigos de variadas idades, credos, cores e classes sociais -alguns dos quais se tornaram personagens de seus livros- comparecem para ler trechos de romances do autor. Seus depoimentos conformam um mosaico de uma cultura regional dominante que ainda legitima a figura do coronel e com muita facilidade se torna emblema do Brasil.
O Pelourinho restaurado, a capoeira, a paisagem do agreste, meninos capitães de areia, canções em parceria com Dorival Caymmi e o mar, elementos apresentados com muita sensibilidade no documentário, ajudam a compor um tom poético que se aproxima do universo literário de Jorge Amado.
O roteiro favorece. A bela seleção de citações-chave da cultura brasileira como as de Nina Rodrigues ou Castro Alves, e a inserção de sequências de filmes como Macunaíma, colocam o dedo na ferida da raça em versões menos conciliatórias da nacionalidade.
Jorge Amado talvez seja nosso romancista mais popular, aqui e no exterior. Sua obra elabora uma visão da nacionalidade que tem lastro e que se popularizou enormemente através das adaptações para a televisão, lamentavelmente ausentes do documentário.
A inexistência de uma voz narrativa única valoriza as rápidas participações individuais. E deixa pequenas brechas para que o exótico resista a tanta domesticação. A mãe-de-santo negra emblematicamente contraria o mestre. Ela não se intimida diante da solução "geléia geral" e muito seriamente afirma o ideal de um candomblé puro. Afinal, há um Brasil que talvez não caiba mais na utopia da diluição dos conflitos.

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