São Paulo, segunda-feira, 5 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viva elas

DARCY RIBEIRO

Não é novidade que eu goste delas. Acho até que homem tem certa inhaca, mas não falo delas hoje como amadas e namoradas muito amadas, nem como colegas de trabalho, que eu sempre preferi porque mais dedicadas, mais confiáveis e mais generosas, capazes de abraçar causas impessoais.
Por vezes, temo até pela eficiência delas. Já dominaram a educação, estão dominando a medicina e o serviço público. As diabas não se põem limites, nadam de braçadas em todos os campos, deixando os rapazes ressabiados e medrosos. Que se virem, esse mundo é dos melhores!
Quero falar hoje é das meninas que vi na Olimpíada e que encheram meu coração. Falo é da Hortência e das Anas, admiráveis pela beleza esplêndida de atletas e pela garra combativa. Vivi esses dias ou essas noites pregado na televisão, vendo extasiado a beleza delas e sofrendo a tibieza deles.
Que é que aconteceu com os homens, meus companheiros de gênero, que só nos dão frustrações? A seleção do Zagalo, em quem púnhamos tantas esperanças, foi de fracasso em fracasso. É certo que houve exceções, como esse fantástico Ronaldinho, mas ele mesmo é fraco demais, não aguenta uma partida inteira, precisa ser refeito.
Não sei nada de futebol, só vejo as partidas das Copas e, agora, da Olimpíada. Mas o que vi não só me entristeceu, também me preocupou muito. Não sou racista, mas não está faltando negro no futebol brasileiro? Veja os negrões da Nigéria, não sabem jogar futebol, mas têm uma raça e uma alma que arrasaram os nossos moreninhos.
A música popular e o futebol são as únicas dimensões em que o povo do fundo, todo iletrado, podia mostrar seu valor. A música, todos sabemos, foi assaltada pela classe média, saiu dos mortos e das periferias, tornou-se erudita, preciosista, melhorou muito, mas deixou meu criouléu de mãos vazias e de violões vadios.
O mesmo ocorreu, me parece, com o futebol, que também se clareou e piorou. Senti isso como culpa pessoal quando quis construir um Ciep num campo de peladas no subúrbio carioca e fui impedido por jovens acampados lá, dizendo que não queriam escola, queriam futebol.
Caí em mim, mas era tarde. Eu já havia acabado com mais de 50 campos de pelada para construir Cieps. Um crime. Nas favelas, por mais que se concentrem os casebres, respeitam-se os campinhos de futebol, que são o espaço planetário das alegrias do povo.
Todas as minhas alegrias desta Olimpíada vieram das meninas. O vôlei de praia, tão carioca, o vôlei de quadra, tão brasileiro, nos deram o que antigamente o futebol nos dava.
Momentos de alegria também tivemos na natação, no judô e no atletismo. Aqui também registraram-se exceções de homens pra valer, como esse Oscar do basquete, que encheu nossas medidas. Mas meu coração pedia mais, muito mais. Em resumidas contas, quem nos deu medalhas e até ouros inaugurais de nossa glória foram as meninas. Viva elas.

Texto Anterior: A vez dos candidatos
Próximo Texto: Rodízio: exercício de solidariedade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.