São Paulo, quinta-feira, 8 de agosto de 1996
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Nova visita da velha senhora

OTAVIO FRIAS FILHO

Nos idos de 1985, um presidente supersticioso e necessitado de apoios decidiu proibir o filme de Jean-Luc Godard sobre a Virgem Maria, cedendo à pressão dos bispos católicos. A protagonista aparecia no filme como jovem moderna, mãe solteira. Às tantas havia uma cena de masturbação, ou que foi vista assim -o filme era de Godard.
A igreja protestou, o filme ofendia os católicos no que lhes era mais precioso. Mas aquela era uma época de grande expansão das liberdades gerais, públicas, especialmente a de se manifestar, o país enojado de tantos anos de oclusão e burrice, de modo que o governo, diante da grita geral, teve de desproibir. E desde então não houve mais censura.
Nossos costumes políticos chegavam ao século 18 europeu, quando se formulou a idéia, não só de que cada um é livre para se expressar, mas de que a ninguém é dado decidir o que outro ser humano adulto pode ou não ver, ler, ouvir. Essa idéia é tão intuitiva que se confunde com o próprio auto-respeito humano, com o intransponível de cada um.
Existe uma razão mecânica, prática, pela qual a liberdade de expressão deve ser a menos sujeita a embaraços, a mais passível de transbordar em abuso e dano, a que mais concessões merece. Ela abriga esses fantasmas cambiantes que são as idéias, as palavras, as imagens, coisas impalpáveis que não se prestam a régua e esquadro.
É a garantia de que haverá mudanças, persuasão recíproca, evolução nas demais liberdades e direitos. Por meio da liberdade de expressão o conhecimento se dissemina, a política bem ou mal é renovada, as pessoas se libertam de seus limites cotidianos, a sociedade se vivifica. Tudo isso ficara mais ou menos estabelecido em 1985.
*
Dez anos depois, a situação se alterou radicalmente: Tiririca em vez de Godard, quem quer censura é o movimento negro em vez do episcopado, quem a implanta é o Judiciário e não mais a ditadura. As razões da nova censura são muito mais aceitáveis; em torno delas existe até certa concordância tácita, certo silêncio obsequioso.
A "causa" não poderia ser pior. A música proibida é péssima, sua voz narrativa é racista, sua difusão tem sido maciça e atinge principalmente crianças, público obviamente imaturo para reivindicar plena liberdade de expressão. E por mais que Godard esteja em refluxo crítico, ainda não dá para comparar Tiririca ao cineasta francês.
É por ser quase folclórico que o caso Tiririca merece discussão, a sua importância está precisamente na sua desimportância. Ninguém seria doido a ponto de pretender censurar as comédias insultantes de Aristófanes, a teoria política detestável de Joseph de Maistre, a peça anti-semita de Shakespeare, "O Mercador de Veneza".
Mas é nas situações de franja, nos casos duvidosos e com que não vale a pena se importar, porque afinal o autor é só um palhaço e sua canção uma bobagem -é aí que se verifica o quanto o direito à livre expressão está implantado numa sociedade, o quanto essa sociedade está disposta a pagar, em tolerância, para mantê-lo intacto.
Sabemos que o Brasil é racista, como todo país etnicamente heterogêneo, que nosso racismo é insidioso porque se dissolve no abismo da desigualdade e se disfarça na "pessoalidade" da nossa formação social. Mas é censura: voltamos a varrer para debaixo do tapete, a silenciar o que incomoda; parabéns: voltamos a proibir.

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