São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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A linhagem do dragão

FLÁVIO AGUIAR

Este livro é um dos levantamentos mais completos e ao alcance do público em geral sobre a história e a legenda do vampirismo na Europa, principalmente na região hoje rumena da Transilvânia, e sobre sua releitura pela indústria cultural, neste e em outros séculos. A primeira versão do livro foi publicada em 1972. A tradução brasileira se baseia na edição mais recente, feita 20 anos depois, revista e ampliada. Acompanham o texto uma bibliografia mais anotada que comentada de obras ficcionais, estudos críticos e históricos, interpretativos do fenômeno, uma alentada filmografia e uma espécie de roteiro turístico na Transilvânia e na Inglaterra para quem quiser se aventurar pelos caminhos do Drácula histórico e do personagem homônimo do livro de Bram Stoker. O "Drácula" de Stoker comemora 100 anos de publicação em 1997 e, como se sabe, é até hoje o mais conhecido e traduzido romance sobre o personagem e a lenda.
Junto com "The Natural History of the Vampire", de Anthony Masters, publicado em 1972 e ainda não traduzido, este livro é indispensável, como literatura de divulgação, para o aficcionado. McNally e Florescu são pesquisadores acadêmicos do tema, e a obra sempre mantém a seriedade, embora às vezes demonstre falta de precisão e adquira um ar de sensacionalismo supersticioso no final, quando rememora o acidente de um dos acompanhantes da expedição que os autores fizeram aos castelos do personagem.
A tradução segue um padrão adequado na maior parte do tempo. Falha, vez ou outra, por evidente pressa de realização, em questões de estilo, como na construção de frases que são visivelmente transposições diretas do inglês.
O livro aborda três temas principais.
O primeiro é a história das tiranias e cruzadas cristãs, romanas e ortodoxas, em regiões hoje da Hungria, da Romênia e da Bulgária, e suas complexas relações com o império turco. Foi neste meio que nasceu e reinou a família dos Drácula, que foram dois, pai e filho.
O segundo tema é a disseminação da história e das lendas sobre o príncipe Drácula (Drácula 2º, diríamos hoje), na Europa e na Rússia dos séculos 15 e 16, sobretudo a partir de uma literatura de língua germânica.
O terceiro fala do cruzamento do tema do vampirismo, que se desenvolve com novas forças na literatura européia a partir do romance gótico do século 18, com a legenda de Drácula, agora transformado em conde. O cruzamento se dá com o romance de Stoker e a partir daí ganha o teatro e o cinema, disseminando-se pelos EUA e pelo mundo inteiro.
O primeiro tema ocupa a maior parte do livro; é seu momento mais rico, mais interessante e também o que mais problemas tem.
A exposição trabalha com uma variedade de fontes e uma documentação muito ricas, combinando relatórios oficiais contemporâneos dos Drácula com folhetos vendidos em feiras e lendas da tradição oral rememoradas até hoje. Comete aí o exagero de querer fazer o leitor acreditar que tudo o que consta dessas fontes é verdadeiro ou tem necessariamente um fundo factual.
O fato de uma mesma versão aparecer com modificações de pequena monta em russo, alemão e rumeno é tomado de imediato como uma confirmação de que o que ali se conta tem um fundo de verdade e não, como de fato às vezes parece, que os escritores de uma versão conheciam as outras, ou uma fonte comum, e as reproduziam com novos adendos ou supressões.
Mas o Drácula (pois há um deles que de fato é o suporte histórico da lenda) que emerge da leitura é, em todo caso, um personagem complexo, atraente, cruel, um estadista de espírito moderno, sem peias morais, disposto a usar, como seus colegas da Segunda Guerra Mundial, ou os de hoje na ex-Iugoslávia, o terror contra populações civis. É uma espécie de príncipe maquiavélico e frio -em estado cru, sem a elegância dos Doges-, disposto a fortalecer o poder do Estado numa região devastada pelas lutas entre o império húngaro e o otomano, e cobiçada pelo mercantilismo então crescente de todos os lados.
O primeiro Drácula era o propriamente chamado Vlad Dracul, nome que depois foi atribuído ao outro. Este nome quer dizer mais ou menos Vlad, da linhagem do dragão, ou do demônio.
O segundo, seu filho, era Vlad Tepes, conhecido como Vlad, o Empalador, e que tinha no método de matar por empalamento um meio eficaz de impor respeito e temor numa terra povoada por barões prepotentes e inescrupulosos, os boiardos, que eram constantemente assediados pelos comerciantes germânicos. A fama do empalador aterrorizava os inimigos, mas sobretudo os subordinados e aliados, pois a traição era moeda corrente na região.
Vlad Tepes teve uma vida rocambolesca; foi prisioneiro e refém dos turcos; reinou na Valáquia, sucedendo o pai, por várias vezes, entre 1448 e 1476. Durante uma dezena de anos, foi prisioneiro dos húngaros, seus aliados, que passaram a ver nele uma ameaça à sua hegemonia. Casou duas vezes, sendo que uma das mulheres morreu durante uma de suas fugas espetaculares nas lutas contra os turcos.
Tece uma longa descendência que reinou na região durante mais um século e meio, até 1627. Foi considerado herói da cristandade pelas barbaridades que fez contra os turcos e monstro pela mesma cristandade, pelas mesmas barbaridades que cometeu contra cristãos. Foi herói da Igreja Ortodoxa até que se converteu ao catolicismo romano, quando passou a ser visto como traidor.
Morreu, afinal, em 1476, traído por seus próprios aliados, quando combatia os turcos. Não foram estes que o mataram, foram gente de suas próprias tropas, em momento que se viu isolado de seus conterrâneos. Este Vlad Tepes, por seus feitos e crueldades, arrastou o nome do pai, Dracul, transformado em Drácula, quando o irlandês Bram Stoker criou a sua versão vampiresca do personagem.
Na abordagem do segundo e terceiro temas, salta aos olhos do leitor um parentesco entre as Europas dos séculos 15 e 16 e dos séculos 18, 19 e 20. No caso deste último, deve-se inclusive ampliar a geografia, porque o fenômeno do vampirismo na indústria cultural vai ganhando escala mundial. Nestas épocas, novos meios de comunicação, ou a ampliação dos usuais em escala desconhecida, põem à disposição de um novo público, ávido de sensações fortes, lendas originárias de regiões envoltas em mistério e abertas à exploração pelo imaginário.
Na Europa dos séculos 15 e 16 foi a imprensa, ampliando o alcance de livros e esparramando-os por feiras e mercados com o desenvolvimento das cidades e do comércio, que divulgou folhetos e mais folhetos ilustrados com histórias apavorantes sobre a crueldade do príncipe rumeno. A partir do século 18, o público leitor começa um processo de ampliação que não cessou até hoje, e prossegue a mesma busca de sensações fortes, já aqui com histórias de um personagem que vem do outro mundo, ou melhor, não vai para lá, quando deveria ir.
Mas é no século 20 que as histórias de vampiro atingem seu apogeu comercial, começando com a versão de Stoker, que junta o vampirismo e o príncipe rumeno num único personagem, o conde Drácula. O teatro, com Bela Lugosi, e em seguida o cinema, com o mesmo Lugosi e depois Christopher Lee, darão uma amplitude nunca vista a esse personagem. Juntam essas novas versões as paisagens de uma sociedade antiga e remota com os meandros do anonimato urbano, das grandes metrópoles cujas periferias e misérias se expandem dramaticamente. E as camadas médias em expansão econômica, social e política, têm sua diversão garantida, com frio na espinha e tudo o mais.
Na parte interpretativa do fenômeno -o vampirismo e sua popularidade imorredoura-, o livro deixa a desejar. Sua conclusão tem três poucas páginas e é superficial e ligeira. Vê na permanência do interesse pelo tema um triunfo do sexo oral sobre o genital, "numa união adúltera (o vampiro é sempre o outro) mais íntima do que a própria cópula". Além disso, numa época de alteração nos papéis desempenhados por homem e mulher, a atitude do vampiro evidenciaria o toque de hostilidade que sempre existe na atividade sexual, onde uma parte deve se submeter à outra. Diz também que o vampiro lembra que as coisas nunca são o que aparentam ser, e que sua evocação está ligada ao temor e fascínio pelos temas da morte, da imortalidade e da eterna juventude.
Entretanto, nesta sobrevivência teimosa de um ser das trevas na era das tecnologias espantosas há bem mais o que explorar. A seguir, para finalizar, aponto apenas algumas das muitas sugestões possíveis.
Há o tema da tirania -verdadeira obsessão do século 20, e não só de um ponto de vista teórico- em figuras que ocupam um espectro ideológico tão amplo que vai de Adolf Hitler e Benito Mussolini até Josef Stalin e Nicolau Ceaucescu, o ditador rumeno executado com sua mulher no final de 1989, depois de um julgamento que mais pareceu um ato de vingança contra seres odiados do que algo sério. (O livro menciona, sem aprofundar, apenas o caso de Ceaucescu). Há o tema do mal e do seu prazer, numa sociedade que desconhece cada vez mais o que é o bem; o mal sempre tem em si um certo ar aristocrático, que se contrapõe à vulgaridade da vida nas sociedades burguesas. Há ainda a angústia provocada pela anonímia nas civilizações modernas. Diante dessa sensação terrível de morte em vida, a presença do morto-vivo parece revelar a esperança de um secreto elixir que preserve as identidades de sua aniquilação.

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