São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Mandato ou cheque em branco?

EMIR SADER

Em "Manifesto do Planeta dos Macacos", o escritor espanhol Manuel Vázquez Montalban afirma que o papel dos cidadãos nos nossos regimes políticos é o de "delegar, com maior ou menor deferência ao político, a gestão da coisa pública e renovar-lhe essa delegação mediante um cheque quase em branco a cada quatro anos, em média".
Se primasse a consciência de que, sem representação política transparente e controle direto e permanente do eleitorado sobre seus representantes, não há democracia política, a reforma político-partidária deveria ser a primeira da lista, condição de todas as outras reformas.
Os mandatos são os únicos cheques em branco que as pessoas dão. Os eleitos não têm compromisso algum com o que disseram, com os programas dos partidos pelos quais foram eleitos, valendo-se dos mandatos como se fossem ações negociáveis.
Um exemplo: senador por São Paulo, José Serra deixou, poucos dias depois de empossado, o mandato de oito anos para o qual foi eleito em mãos de um suplente desconhecido e foi ser ministro do governo. Recentemente, deixou o ministério. Para reassumir o compromisso que tem com os eleitores no Senado? Não. Para se candidatar a outro mandato. Este foi repassado a um empresário, que o recebeu como se fossem ações na bolsa e as administra no jogo de trocas do Congresso.
Mais grave ainda: não li em nenhum órgão da nossa imprensa artigo, editorial ou carta de leitor cobrando a responsabilidade do senador com o mandato que lhe foi concedido, como se fosse um procedimento correto, como se tudo o que é legal fosse legítimo.
Um exemplo diferente: o ex-prefeito de Angra dos Reis foi eleito deputado há dois anos e passou a ocupar o primeiro lugar destacado nas pesquisas eleitorais para suceder a seu companheiro do PT num terceiro mandato desse partido naquela cidade do Rio de Janeiro.
No entanto negou-se a se candidatar, alegando que 3.000 votos que o elegeram deputado foram dados fora de Angra e assim estaria abandonando o mandato dado por aqueles eleitores. O candidato do PT está em terceiro lugar, e assim, por compromisso com seu mandato -decidido por responsabilidade cidadã e não por qualquer lei que o obrigasse-, esse partido pode perder a possibilidade de realizar um terceiro mandato seguido naquela cidade.
São dois exemplos diferentes e que demonstram formas diferentes de encarar o compromisso popular. Numa democracia, deve haver controle direto da cidadania sobre todas as instituições, e, no caso dos mandatos, os eleitores devem ter o direito de resgatá-los, se o eleito não cumpre com o que os levou a sufragá-lo.
Somente neste caso o voto distrital é um avanço democrático: porque torna possível a definição de quem o elegeu, para efeitos de controle, prestação direta de contas e destituição e substituição, quando o estime conveniente.
Somente o mandato imperativo, em vez do cheque em branco, juntamente com a fidelidade partidária, a reformulação da proporção de representação dos Estados no Congresso e uma forma absolutamente equitativa de expressão nos grandes meios de comunicação, podem tornar o sistema político um instrumento para que, saídos da ditadura, possamos chegar à democracia que, se não tem alma social, esconde uma ditadura das elites.

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