São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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Gruppo 63 encontra Gruppo 93

Duas gerações da literatura italiana reúnem-se em São Paulo

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acolhendo a sugestão do poeta Haroldo de Campos, o Instituto Italiano de Cultura e a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo resolveram convidar, para atividades ligadas à 14ª Bienal do Livro e à USP (leia box nesta página), dois participantes do assim chamado Gruppo 93: o poeta Lello Voce, um dos fundadores da revista literária "Baldus", principal órgão do grupo, o crítico e tradutor Aldo Tagliaferri, e ainda o escritor Francesco Leonetti, um dos fundadores Gruppo 63, de certa forma considerado antecessor do Gruppo 93, em termos de vanguarda literária.
O Gruppo 63, cujos integrantes se reuniram primeiramente em volta da importante revista "Il Verri" (1956) e se dispersaram com o último número da revista "Quindici" (1969), conta com nomes famosos como Eco (as teorizações da "obra aberta"), Sanguineti (poesia, linguagem e ideologia), Arbasino (o crítico-acrobata no trapézio da cultura), Manganelli (a literatura como mentira) e outros, como Pasolini -o companheiro de viagem-, e Luciano Anceschi -grande conhecedor de Eliot e Pound, o fundador da revista "Il Verri" e o elo de ligação do grupo com o primeiro experimentalismo italiano do século 20: o pólo Ungaretti-Montale.
"No que se refere ao experimentalismo literário, no âmbito da frase (um sujeito, um verbo, vários predicados)", explica Renato Barilli, crítico militante do Gruppo 63 e apreciador do Gruppo 93, "os membros da neovanguarda já haviam esgotado todas as inovações possíveis: tinham exasperado os aspectos semânticos, valendo-se dos aportes de toda língua e jargão e praticando toda liberdade e depreciação; haviam transtornado a sintaxe mediante um esforço de aceleração, ou seja, recorrendo a todo assintatismo possível. O que mais restava a fazer?".
Duas das coisas que o Gruppo 93 se colocou como meta, no entender do crítico. Abandonar essa faixa já vastamente experimentada e trabalhar "acima" e "abaixo" dela. Acima, por meio do procedimento da "citação", que, grosso modo, consiste em se pegar clichês (literários ou não), neutralizá-los por meio das aspas (mesmo se apenas mentais, invisíveis de fato), até considerá-los como "ready-made". Surgem, então, dentro desta perspectiva, uma grande quantidade de fórmulas: a "mode retro", a "literatura ao quadrado", a "reescritura", etc.
Trabalhar abaixo da frase significa mergulhar nas dimensões da experiência intraverbal, sendo que "todo o material linguístico é como que introduzido num enorme banco de dados que permite sua retirada a qualquer momento e, mais ainda, a retirada aos pedaços, por assim dizer, em fragmentos, com consequentes processos de hibridação. Para o experimentador de hoje não há limites, ele pode pescar de qualquer âmbito, presente e passado, nacional e estrangeiro, na língua corrente ou nos vários dialetos. Além disso, ele pode manipular esses dados de base, quebrá-los à vontade e levar adiante seu próprio bricolage" (1).
Mas existe uma terceira proposta bastante interessante do Gruppo 93, vista como "pós-modernismo crítico", que foi salientada por Romano Luperini: "Estes jovens vêm 'après le déluge', conheceram o desencanto. Nenhum deles tem a menor ilusão quanto à possibilidade subversiva da linguagem, ninguém é tão otimista a ponto de ter a confiança neopositivista das estruturas combinatórias da linguagem, que era própria da maioria do Gruppo 63, nem a marxista de revolucionar a ideologia com a linguagem, que era própria da minoria. Sua única esperança é que ainda seja possível, mesmo hoje, encontrar um sentido e que ele surja de uma pluralidade real -concreta, material- de vozes. (...) Como a neovanguarda, também o Gruppo 93 não mais crê, de fato, numa literatura inocente ou de primeiro grau; todavia, diferentemente dos 'novíssimos' do Gruppo 63, sua literatura de segundo grau tende não a destruir, mas a criar, artificialmente, 'ça va sans dire', as condições de um diálogo...".
O que se inclui nessa tentativa de diálogo não é apenas a reciprocidade e a polifonia bakhtinianas, mas o uso dos próprios recortes do passado cultural, os clichês e as citações, pois as vozes evocadas "não são simplesmente imitadas ou repetidas, mas parecem emergir de uma profundidade real (histórica e antropológica) e aspirar a falar de novo, de coisas novas e de uma nova maneira (...) Se a lógica pós-moderna promove a contaminação de vanguarda e tradição para anular seus limites e nivelar seus traços, os jovens do Gruppo 93 fazem reviver a ambas, as fazem reagir uma com a outra por meio da alegoria (o uso alegórico da tradição). Poder-se-ia dizer, com Walter Benjamin, que eles mantêm o conteúdo efetivo de suas citações, para transformá-las depois alegoricamente em conteúdos de verdade (...) Falar em pós-modernismo crítico significa restabelecer a racionalidade comunicativa e, portanto, a possibilidade de projeto, a sintaxe, o alegorismo, lá onde o pós-moderno só vê justaposição, parataxe e simbolismo" (2).
"No campo da cultura literária" -esclarece Pietro Cataldi- "o eixo pós-estruturalista-desconstrucionista franco-americano sancionou a autonomia e a soberania das palavras, na procura perpétua ou dispersão do sentido, dando por definitiva a impossibilidade do relacionamento palavra-coisa. Justamente essa atitude que até há pouco tempo esgotava o horizonte de nossa cultura, é tomada aqui, com direito, como fazendo parte da tradição do simbolismo (...). Como pode então agir, num mundo que se quer reduzido a palavras, quem acredita nas coisas, mas trabalha com as palavras? O estatuto histórico da alegoria o remete a um objeto, a uma realidade, a um projeto de escritura que tende a superar o alheamento da literatura" (4).
Finalmente, sobre a questão da marginalidade, sobre o deslocamento do campo de ação da arte, Guido Guglielmi, um dos ideólogos da Milano-poesia, ligada ao Gruppo 93, tem a última palavra: "Como pode uma atividade irremediavelmente artesanal como a atividade artística sobreviver na civilização do mercado? (...) Há dois séculos a linguagem da arte tem sido a de oposição aos projetos de racionalização da sociedade moderna, oposição essa que teve que pagar seu tributo às potências dominantes, mas nunca deixou de ser oposição. A arte nunca foi completamente domesticada ou, se preferirmos, homologável. Sua capacidade de resistência tornou-se hoje mínima e enganadora. A indústria cultural transformou a arte hoje numa sua função. A arte tornou-se um bem cultural, nem mais nem menos do que as religiões e parece viver tão somente de uma cultura artificial e mistificada dos 'valores'. A indústria cultural administra o patrimônio estético para um uso gastronômico das obras, esvaziando-as de sua verdade. Difundiu-se a convicção de que a nossa seja a menos pior das sociedades possíveis, mas não nos abandona o pesadelo de que a nossa segurança se apóie numa precariedade fundamental. O maior risco encontra-se na aparente normalidade e na ausência de risco da situação histórica. (...) Eis por que uma posição de marginalidade pode ser -ou continua sendo- a posição mais produtiva para o exercício da arte. Chamarei de vanguarda à tendência contra a uniformização. Experimental é -e creio que deve continuar sendo- a palavra que comprova o próprio sentido na instabilidade da própria situação, a palavra que se expõe para fora de qualquer proteção" (5).

Notas:
1. Renato Barilli em "Baldus - Rivista di Letteratura", Ano 2, nº 1, agosto de 1991, págs. 25 e 26, Ed. Nuova Intrapresa, Milão. Cf. também "Gruppo 93", 1990, Ed. Piero Manni, Lecce, pág. 65.
2. Romano Luperini em "Baldus", Ano 2, nº 1, págs. 29 e 30.
3. Pietro Cataldi em "Gruppo 93", pág. 66.
4. Guido Guglielmi em "Baldus", Ano 2, nº 1, págs. 27 e 28.

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