São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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"Independence Day" e o direito ao inimigo

Filme satisfaz vontade coletiva de reconhecer conflitos

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA FOLHA, DE NOVA YORK

"Independence Day", em cartaz em São Paulo, é o filme do verão nos Estados Unidos. Seu lançamento, que estava previsto para 4 de julho, dia canônico da independência americana, foi antecipado para o dia 2, frente aos pedidos de compra de bilhetes por telefone. No primeiro final de semana de programação, o filme estourou.
Há três semanas, nas salas cheias, as platéias continuam reagindo ao filme com uma espécie de entusiasmo infantil, manifestando-se com gritos e aplausos. O que é suficiente para que as "pessoas inteligentes" torçam o nariz e façam comentários negativos sobre a história, que de fato é previsível demais -a mágica de encontros e reencontros sempre na hora e no lugar certos-, ou então sobre a possibilidade técnica de tal ou tal façanha dos terrestres. A inteligência, quando existe, já é uma maldição; a necessidade de mostrá-la (mesmo quando não existe) torna-se trágica.
Em suma, não é o caso de discutir os efeitos especiais, criticar os atores ou o roteirista para demonstrar aos amigos que a gente não se deixa convencer facilmente. Melhor aproveitar, e assim participar, de uma grande festa coletiva. Tanto mais que a festa é interessante pelo estado de espírito que ela revela nas platéias e que poderia também ser o nosso.
Vários críticos (o melhor foi Jay Carr, no "Boston Globe" de domingo, 21 de julho) interpretaram os filmes do verão americano deste ano como expressão da irritação popular com as instâncias de poder em geral. Governo ineficiente, agências oficiais infiltradas, etc. Mesmo "Twister" foi lido como metáfora de uma crise que arranca tetos e vacas das casas dos pequenos "farmers" americanos. Mas a verdadeira festa, em "Independence Day", não é tanto quando os extraterrestres explodem a Casa Branca. É quando os terrestres decidem reagir, na exaltação do contra-ataque. Por mais que o governo seja babaca ou mentiroso, a platéia se mantém maciça e belicosamente terrestre. É compreensível, certo, mas menos banal do que pode parecer.
Com todas as devidas exceções, nas últimas décadas, Hollywood nos sugeriu -ao menos em suas produções mais populares e marcantes- que os extraterrestres poderiam ser tão humanos quanto a gente. Embora diferentes fisicamente, seriam queridos e, afinal, melhores do que nós.
"Peace, peace and love", paz e amor... Os anos 60 e as músicas de John Lennon não tiveram muita dificuldade: ganharam direto. Só podiam. Somos os últimos rebentos da cultura aparentemente mais modesta e de fato mais prepotente e orgulhosa que já se teve. Nem precisamos de sonhos de conquista e conversão forçada dos infiéis; tudo isso já praticamos com sucesso relativo. Nossa verdadeira força é a universalidade.
Somos a única cultura que se declara disposta a acolher a todos, em pé de igualdade. E pouco importa que nosso acolhimento deixe temporariamente a desejar. Podemos pensar que são só acidentes de percurso. Pois em princípio não temos inimigos, só amigos e colegas, na espera mais ou menos apressada de se tornarem membros da grande família do homem.
O individualismo moderno não conhece fronteiras, diferenças de sexo, religião, convicção política ou cor de pele. Talvez, por isso mesmo, aliás, nos tornemos frequentemente racistas, em uma espécie de reação contra o imperativo cultural que nos persegue: "Reconhece teu próximo como teu semelhante". Sendo todos da mesma espécie e depositários dos mesmos direitos humanos, não é surpreendente que a história nos pareça às vezes estar terminada. Podemos pretender que, com o triunfo de nossa cultura, acabarão os conflitos. Quem serão os inimigos? O capitalista é homem como a gente, o terrorista também, assim como o fundamentalista, o bandido, o selvagem.
E, quanto aos desacordos que nos colocariam uns contra os outros, nunca deverão nos levar a tomar as armas, pois também, enquanto homens, somos supostamente depositários de uma razão comum, universal. Chegamos até a pensar, aliás, que ela é um dispositivo natural. Ou seja, acreditamos que nossa cultura, por ter vocação universal, é a própria encarnação das leis da natureza. Daqui a pouco acreditaremos que é possível e suficiente discutir razoavelmente não só com nossos semelhantes, mas também com os animais ou a natureza. Já há pessoas conversando com o boi servido em seu prato para conciliar sua simpatia no momento da digestão. Daqui a pouco, em vez de levar o guarda-chuva, tentaremos conversar com as nuvens para que o tempo nos dê um pouco de sol razoável.
Temos facilmente a humanidade. E, naturalmente, os limites do que reconhecemos como humano se estendem além da espécie, até os supostos habitantes de planetas longínquos. Pouco importa que sejam diferentes de nós e ameacem, por exemplo, nosso planeta. O presidente de "Independence Day", com a Terra à beira da destruição total e as principais cidades apagadas do mapa, ainda chega a lançar um último apelo ao diálogo a um extraterrestre. Habermasiano até não poder mais. A platéia está mais do lado de Will Smith que, administrando um soco bem prosaico na cara do mesmo (extraterrestre, não presidente), comenta: "Eis o que eu chamo de um contato de terceiro grau...".
Inimigos não faltam, mas faz falta, sim, nossa capacidade de reconhecê-los como inimigos: encarar um conflito aberto tornou-se repreensível na pós-modernidade individualista. Ora, a festa de "Independence Day" é justamente a liberação de sentimentos que passamos a considerar pouco nobres, a autorização de ter um inimigo e querer liquidá-lo.
No filme, nosso universalismo planetário é explicitamente respeitado: até os iraquianos lutam para a Terra. Para isso, foi preciso encontrar um inimigo à altura de nosso universalismo: o desumano teve que migrar para fora da Terra. Mas a exultação catártica das platéias talvez sugira algo diferente e mais próximo de nossa realidade: uma vontade coletiva de voltar a reconhecer os conflitos, de encará-los não com vergonha, mas com determinação.
Não é necessário, então, preocupar-se com o eterno retorno de emoções fascistas e agressivas. Talvez, ao contrário, na elação das platéias de "Independence Day" se manifeste uma vontade explícita e não culpada de sobreviver como cultura. E, para isso, é necessário saber reconhecer diferenças intransponíveis e, eventualmente, inimigos.

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