São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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Só viraram as costas e prosseguiram no doce ofício

DARCY RIBEIRO

18 de janeiro de 1950 - Estou devendo umas conversas sobre a vida sexual dos índios. São apenas indicações iniciais, pistas para explorar melhor quando houver condições. O tratamento recíproco de homens e mulheres é simétrico, embora sempre se portem com decoro nos gestos. Há mulheres que gostam especialmente de falar de sexo, comentando quem estaria trepando com quem, até as mulheres casadas. Não têm qualquer discrição nas palavras, falam de todos os assuntos com naturalidade, comentando a vida sexual de cada membro sem constrangimentos.
João Carvalho conta que, por duas vezes, uma durante o dia, outra à noite, aqui no posto e em viagens, viu casais de índios amando e que eles não deram importância à sua presença. Apenas viraram as costas e prosseguiram no doce ofício.
Tenho a impressão de que eles se preocupam tanto como nós com os temas sexuais, o que é uma indicação de desequilíbrio e insatisfação. Há homens que não conseguem mulher e, mais ainda, há mulheres sós ou mal servidas pelos maridos, o que dá bastante base para trazer a sexualidade à tona.
Não parece haver qualquer perversão generalizada, mesmo a homossexualidade, ao que me disseram, é desconhecida. Chega a causar espanto quando é referida. Os casais são afetuosos, andam quase sempre juntos e, não raro, se acariciando -no cafuné e nas bolinas. As conversas eróticas são comuns, delas participam pessoas de todos os sexos e idades. Devem agir como estimulantes, além do fumo, que os embriaga do modo como usam os charutos -aspirando fortemente e retendo a fumaça no peito-, e das bebidas fermentadas, que dão lugar a orgias.
Sobre a concepção do ato sexual, se puro, natural, doloroso, perigoso, eu não descobri nada ao certo. Mas há um nítido esforço dos homens para convencerem as mulheres de que as que têm relações com karaíwas morrem em consequência disso. Baseiam a suposição no fato de algumas terem morrido no parto de filhos gerados por brancos e em doenças venéreas apanhadas durante as andanças, que também têm causado dores e mortes. Porém as mulheres não parecem lá muito convencidas disso; contudo devem temer. Os homens não têm nenhuma inibição para as trepadas. Sua expectativa é de que se uma mulher se abrir, acolhedora, eles transarão.
O característico erótico atribuído ao branco ou ao preto é o avantajamento da genitália, que eles crêem ser tão exagerada no homem como na mulher. Essa visão surge do fato de que eles, não usando os amarrilhos que embutem o membro para dentro do corpo, os mostram ao natural, fazendo parecer maiores. Alguns índios são referidos como portadores de membros descomunais, "como o dos brancos". São, por isso, desejados e temidos pelas mulheres.
Não sei nada sobre a regulamentação, o período e frequência do intercurso sexual de marido e esposa. Arí-djú afirma que, em sua aldeia, somente o Japú-kái estava mantendo relações sexuais com a mulher, porque todos os demais têm filhos pequenos. Ele próprio é pai de uma menina de três anos, e não podia ter sua mulher porque ela não queria engravidar de novo. O Serapião, que não tem filhos, teria também relações, mas como sua mulher não deseja ainda engravidar e parir, por ser nova e não querer ficar presa à criança, ela o retira de si antes de ejaculação. Ele desejaria filhos. O Uirapipó-rijú, que é solteiro e tem mais de 20 anos, embora viril "não conhece mulher, só depois de casado; quando conseguir uma, é que irá conhecer". Se estivesse em outra aldeia onde houvesse moças e mulheres sem marido, não aparentadas, ele poderia experimentar o amor antes do casamento, mas lá em casa mesmo é impossível.
Essas informações me parecem suspeitas. Seria incrível que, só depois do filho ter quatro anos e libertar-se completamente da mãe, o pai pudesse cobri-la novamente.
Todo esse período e os meses mais próximos de antes do parto seriam de abstenção? Arí-djú afirma que sim, têm que agir dessa forma para que a mãe possa cuidar do filho, senão teria dois muitos pequenos e nem poderia criá-los, fazendo suas outras tarefas. Há o expediente da mulher do Serapião que pode contornar isso. Seria usado habitualmente pelos casais nessas condições? Isso faria deles o povo do coito interrompido. As conversas sobre milagrosas drogas abortivas dos índios são invencionices.
Sobre relações pré-conjugais não adiantei mais nada que o caso daquele homenzarrão, de 20 anos, donzelo. Quanto à extra-maritais, tenho a impressão de que os índios não reagem com violência quando os brancos perseguem ou mesmo possuem suas mulheres, como se vê pelos casos do posto, nenhum dos quais teve consequências sérias. A tolerância recíproca nas relações entre eles mesmos será ainda maior.
A preocupação de João Mirá a esse respeito é também reveladora. Tanto mais porque, aqui, soube que quem dormiu com sua mulher essas noites foi um outro índio de sua aldeia. Ela comentou, faceira, que nada diria ao marido para que "não fique triste".
Isso é tudo que soube naquelas conversas de viagem, somado a algumas observações diretas. O assunto é muito do gosto dos índios e se poderá voltar a ele quando tivermos um intérprete melhor e alguém que queira contar seus casos e os alheios.

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