São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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A maior carta de amor do mundo

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a entrevista concedida por Darcy Ribeiro à Folha na última terça-feira sobre "Diários Índios".
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Folha - Os "Diários Índios" foram escritos entre 49 e 51. Por que só agora são publicados?
Darcy Ribeiro - Nunca pensei em publicar os diários, mas sim em subtrair deles um texto teorizante. Não pensava em falar dos casamentos que vi durante as expedições às aldeias dos índios Urubus-Kaapor, mas de um casamento hipotético, de uma família hipotética.
É assim que a antropologia trabalha. Converte tudo em uma coisa genérica. Mas o genérico não há. O que existe é cada casamento, cada batizado, marcado por suas circunstâncias.
Acho que esses "Diários Índios" são como "Tristes Trópicos", de Claude Lévi-Strauss, um livro muito melhor do que as obras teóricas do antropólogo francês. "Tristes Trópicos" é um livro cheio de carne, de verdade. É o que vai ficar de Lévi-Strauss.
Meus diários também são assim. De todos os meus livros, esse é o único que será publicado no ano 3000, porque mostra a vida de um povo que está desaparecendo, que está mudando.
Conta o que vi a cada dia, o que os índios caçaram e comeram hoje, que cerimônia foi feita. Toda minha visão posterior do mundo dos índios foi bebida aí. Ofereço a mão para que o leitor caminhe comigo 2.000 quilômetros na selva e conheça dezenas de aldeias.
Folha - Como foi reler a obra e prepará-la para publicação depois de 46 anos?
Ribeiro - Foi emocionante. Me senti jovem outra vez. Escrevi os diários quando tinha 26, 27 anos. É uma maravilha ter isso em mãos. Também fiquei muito emocionado porque tinha me esquecido que os havia escrito em forma de carta para uma mulher que amava muito, minha primeira mulher, Berta. É a maior carta de amor do mundo.
Folha - Nos diários, o sr. sustenta que o processo de pacificação dos índios inevitavelmente os destrói...
Ribeiro - O antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e depois a Funai (Fundação Nacional do Índio) abriam as terras dos índios à civilização e os deixavam desarmados. Depois, não sabiam o que fazer com eles.
Os xavantes, por exemplo, ocupavam uma área do tamanho da França, onde ninguém ousava entrar. Depois, ficaram com um pedacinho mínimo. E os fazendeiros tomaram toda a terra.
O contato dos índios com a civilização é inevitável, mas a melhor maneira de defendê-los é criar em torno deles uma grande área de maneira que este intercâmbio torne-se mais difícil.
Assim eles têm mais tempo de isolamento, podem mudar lentamente e digerir essa mudança. É o que aconteceu com a criação do Parque do Xingu, idealizado por Orlando Vilas Boas. Até agora, este é o melhor exemplo de como defender os índios.
Folha - Mas, nos dias de hoje, a idéia de que os índios possam viver isolados não é uma ilusão?
Ribeiro - A integração é inevitável porque não depende dos índios. A civilização chega lá, rodeia-os. Eles perdem seus meios de vida e, para comprar sal, comida, pano, precisam produzir. Então, tornam-se mão-de-obra e passam a viver como caboclos.
Não há comparação entre o nível de vida do caboclo e de um grupo indígena isolado. O caboclo vive na miséria, na fome, porque é empregado de alguém, precisa produzir para comer.
Agora, o índio isolado, que não tem de produzir mercadoria nenhuma, tem tempo pra caçar, pra pescar, para plantar roça. Eles têm uma fartura formidável. Mas, se são compelidos a produzir mercadorias, caem na condição de caboclos.
Também está sendo relançado agora outro livro meu, "Os Índios e a Civilização", em que discuto esse processo de integração.
Há anos atrás, na década de 60, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) acreditava que o Brasil seria o melhor exemplo da "democracia racial" de que falava Gilberto Freire.
Encomendou então uma série de estudos importantes. As pesquisas foram uma decepção. No que diz respeito aos negros, por exemplo, revelou-se a existência de muito preconceito em nossa sociedade.
Eu, por minha parte, mostrei que nunca houve assimilação dos índios pelos brancos.
Os índios são destruídos e, no lugar deles, surge um núcleo diferente, mestiço. E que não tem nada que ver com eles senão geneticamente -porque as mulheres são emprenhadas- ou devido à manutenção da cultura de adaptação à floresta. Mas os índios que sobram, mesmo um século depois, permanecem índios, ainda que tenham esquecido sua língua. Índio é índio, como cigano é cigano, e judeu é judeu. É uma auto-identificação profunda.
Folha - Então não é possível uma assimilação que, ao mesmo tempo, respeite os valores dos índios?
Ribeiro - A teoria da transfiguração étnica, de que trato no livro "Os Índios e a Civilização", é de que os índios mudam precisamente para manter sua identidade. Os judeus de hoje são diferentes dos judeus de 500 ou 1.000 anos atrás. Mas continuam judeus. Não é mudar para assimilar, é mudar para preservar.
Folha - Que proposta o sr. tem hoje para a questão indígena?
Ribeiro - É preciso assegurar muita terra para que o índio tenha independência. Tem de ser uma terra tão grande quanto seja necessário para que ele desenvolva sua economia de caça e pesca, sua lavoura.
Agora, acima de tudo, ele tem de ter o direito de ser índio. É uma violência a ida de missionários para lá. O missionário liquida a mentalidade dos índios, mata suas almas. É necessário que haja uma proteção leiga.
Folha - Há menos de dois anos, o sociólogo Hélio Jaguaribe disse que até o século 21 não existiriam mais índios no Brasil. Ele está certo?
Ribeiro - Não. Seu pai trabalhou com Rondon a vida inteira, fez o mapeamento do Mato Grosso. Acho que o Hélio deve ser inimigo do pai, tem raiva dele. Por isso, fala essas bobagens.
Ele não percebe que houve uma mudança no caráter da civilização moderna, que está marcada por dois movimentos contraditórios.
Por um lado, surgiram macroetnias ou supernacionalidades antes impensáveis. Quem poderia pensar que a Alemanha, a França, a Itália e a Inglaterra seriam uma só nação? Ao mesmo tempo, essas macroestruturas perderam poder sobre suas minorias étnicas. Os bascos, por exemplo, nunca tiveram tanta liberdade para ser bascos. Na Bélgica, a Universidade Católica de Louvain dividiu-se em duas: uma parte fala francês, a outra adotou o flamengo.
A globalização abriu um espaço para o fortalecimento das etnias que os Estados nacionais não permitiam. A mesma coisa está acontecendo com os índios. Nos EUA e no Canadá, por exemplo, os índios são cada vez mais índios.
Isso também está acontecendo no Brasil, onde a situação melhorou muito. Nossa população indígena aumentou para cerca de 300 mil. O apoio da opinião pública nacional e, sobretudo, internacional obrigou o governo a reconhecer e demarcar territórios.
Também muitos deles estão se tornando autônomos. Estão se livrando do padre, do funcionário da Funai, do antropólogo. Muitos grupos já estão gerindo sua própria economia. Estão tomando o comando de suas próprias vidas.
Folha - Como o sr. avalia a performance do governo Fernando Henrique Cardoso nessa área?
Ribeiro - O presidente é casado com uma antropóloga competente, a dona Ruth. Mas ele deu um terrível passo em falso, induzido pelo ministro da Justiça, Nelson Jobim. Assinou um decreto que abre a possibilidade de se rediscutir territórios indígenas já demarcados. É como se o Brasil permitisse a discussão sobre suas fronteiras. Os bolivianos e equatorianos reivindicariam terras até Brasília. Desde então, houve cerca de 800 contestações contra algo como 50 territórios. A maioria foi colocada de lado, mas, se apenas um grupo indígena perder suas terras, ou parte delas, todos os outros ficarão intranquilos.

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