São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 1996
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O socialismo na era da informática

TARSO GENRO

A doutrina do socialismo moderno concebida pelo marxismo "vencedor" -que marcou e estimulou toda luta socialista deste século- tinha como ponto de partida que a transformação das "forças produtivas" facilitaria a reorganização das "relações de produção" para, a partir daí, ser construído um "novo homem", que só agisse alicerçado nos valores da solidariedade e da igualdade.
As relações entre os indivíduos e grupos sociais seriam, então, determinadas pelas novas relações de produção, e, em consequência, a socialidade seria um sucedâneo de relações econômicas novas, com base na máxima "a cada um, segundo o seu trabalho".
Mas o marxismo tradicional jamais se questionou sobre a seguinte hipótese: e se a revolução das forças produtivas (ciência, técnica, instrumentos de trabalho) prejudicasse a possibilidade de mudar as relações de produção?
E se as forças produtivas criassem condições de produtividade para eliminar toda a carência e, ao mesmo tempo, não impulsionassem a mudança do Estado, das relações jurídicas, de poder e distribuição? Se isso acontecesse, "o que fazer?", como diria o velho Lenin.
Sem esse questionamento, o marxismo jamais se interrogou a respeito de questões simples e lapidares: como os homens querem viver? Como querem trabalhar e organizar coisas elementares como vizinhar? Como querem utilizar o tempo livre ou qual a atenção que pretendem dar no futuro, por exemplo, ao esporte e à arte?
Essas dúvidas jamais se colocaram porque esses problemas residiriam em "última instância" na "superestrutura", cuja determinação fundamental viria da base econômica da futura sociedade.
Essa visão, originária de uma interpretação específica da obra de Marx, acabou por orientar o movimento socialista, no interior do qual o sujeito partidário -ou a classe ou o Estado- jamais indagava sobre novas formas de socialidade.
Tal omissão limitou as preocupações dos seus teóricos às questões ligadas à técnica, à produção, às relações entre os diversos fatores da produção. Jamais atentando para as relações de trabalho, as relações culturais, a sexualidade, o modo concreto de os homens viverem a sua cotidianidade, ou seja, aquele lugar em que as pessoas vivem a história.
À utopia econômica socialista jamais correspondeu, portanto, a um "novo modo de vida", que, afinal, só poderia ser o "reflexo" das mudanças materiais.
O que se percebe, porém, nos dias de hoje, é que, se a riqueza (numa sociedade socialista) for distribuída com base na fórmula "a cada um, segundo o seu trabalho", essa sociedade afirmaria a desigualdade: a terceira revolução científico-tecnológica atribui a uma minoria de trabalhadores qualificados e especializados o exercício do trabalho criador de valor, tais como a produção da inteligência artificial e a geração da informação.
Esse pequeno grupo é que criará um montante enorme de valor agregado, incomparável com o resto dos prestadores de serviços, contínuos, intermitentes ou simples trabalhadores "subalternos", que vão da limpeza à assistência à velhice, do cuidado com as crianças e doentes à recuperação dos criminosos.
Logo, se uma eventual transição socialista -ou mesmo uma sociedade simplesmente mais justa- basear-se na fórmula "a cada um, segundo seu trabalho", esta sociedade afirmará a desigualdade, em vez de eliminá-la ou mitigá-la.
Marx pensou em termos de "a cada um, segundo o seu trabalho" a partir da tendência do capitalismo moderno a proletarizar e assalariar, o que seria consequência da nova organização industrial.
Tal tendência se desenvolveu efetivamente até a década de 60, quando se reverteu, pelas formidáveis transformações da robótica, da telemática e da informática, que tendem a ocupar cada vez menos trabalhadores nos setores que agregam valor, ou seja, nos setores efetivamente produtivos.
Essa revolução inverte a revolução: exige do sujeito transformador uma utopia, ao mesmo tempo mais simples e mais complexa. Mais simples porque agora deve responder a uma interrogação cristalina: como os homens querem viver bem o seu cotidiano?
E também mais complexa porque deve responder (para que o "valor do trabalho" não seja mais a "medida" da repartição): como esse novo modo de vida pode ser conscientemente orientado para fazer da produção um instrumento e não um fim que presumidamente geraria uma outra vida?
E mais: tanto a pergunta "como os homens querem viver" como a proposta de um "outro modo de vida" (que seja autêntico e conscientemente orientado) só podem se constituir por meio da liberdade e da democracia.
A partir daí é que se poderia desenhar conscientemente novas relações de trabalho e socialidade, que subordinariam a organização da produção, inclusive arbitrando o "valor social e humano" das tarefas menos nobres economicamente.
O socialismo, tal como foi concebido pelos modernos, está impossibilitado pela realização das suas próprias premissas. É preciso reinventá-lo.

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