São Paulo, terça-feira, 13 de agosto de 1996
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Uma força estranha nos leva a filmar

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não dá mais para segurar. Parece que desta vez vai. Os olhos da década de 60 poderão se reabrir. Oxalá. Porque se o Brasil não se adaptar aos novos tempos "audiovisuais", corre o risco de virar um país sem espelho.
A violenta onda de imagens que o mundo está propagando pode nos transformar em passivos repetidores de emissões alheias. Mas, parece que agora vai.
Os sintomas de renovação estão em vários pontos. No Rio de Janeiro, berço do cinema novo, conclui-se o Teleporto, nosso cais virtual por onde navegaremos para o resto do mundo. A Federação das Indústrias do Rio está amarrando vários projetos de estímulo à produção.
No Rio Grande do Sul, o Festival de Gramado segura a barra do cinema brasileiro há 23 anos, mantendo vivo este sonho. No Ceará, o governo de Tasso Jereissati abriu a escola de cinema "Dragão do Mar", com 3.500 vagas e prepara um pólo de cinema naquela Los Angeles nordestina, seca, luminosa e bela.
E finalmente, os ministérios da Cultura e da Indústria e Comércio, em uma clara ligação entre arte e indústria, levarão o presidente da República a assinar uma medida provisória, aperfeiçoando a Lei do Audiovisual, que já existe, embora precariamente.
Um novo capítulo pode começar para essa força estranha que nos leva a filmar.
País sem rosto
Há 30 anos, só tínhamos quatro ou cinco câmeras no Brasil. Só filmávamos em preto e branco. O Eastmancolor chegou nos anos 70. Não havia televisão em rede. Éramos um grande país sem rosto.
Hoje, ao contrário, temos rostos demais. Quais serão os nossos? Não podemos ficar expostos ao maremoto de imagens de um mundo cada vez mais "americano", pois a "globalização é comandada por uma visão de mundo que nos coloca como 'espectadores' da vida dos outros".
Para nós, do cinema novo, filmar era um ato quase sagrado. Cada vez que ligávamos a câmera, sentíamos que alguma coisa de essencial estava sendo captada pela primeira vez.
Cada pedra era importante, cada cactus do Nordeste, cada menino de favela, cada rosto popular ganhava um relevo de ícone. Sentíamos aflorar a alma das coisas.
Filmávamos decifrando segredos e nos olhávamos com susto e respeito, achando que fazíamos alguma coisa "histórica". Essas imagens originárias estão já impressas em nossa memória, mesmo que os jovens não saibam. É difícil entender isso, com a profusão de cores e sons de hoje; mas já fomos assim, apagados.
Cinemodernismo
O cinema novo nasceu como um eco modernista temperado pelo desenvolvimento dos anos 50 e pela esperança que o marxismo utópico carioca (do Iseb) nos legou.
O cinema novo foi a última onda da Semana de 22. Não existiria sem o neo-realismo italiano, sem a nouvelle vague e sem a cultura juscelinista. Na literatura, muito do que fizemos já tinha sido revelado.
Vínhamos depois de Mario de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano, João Cabral, mas a "imagem" ainda estava virgem. Queríamos limpar a ganga impura que cobria as coisas.
Nem todos os filmes eram bons, no sentido "americano" da palavra, ou seja, aquela fita a que se assiste, se curte e nos leva depois ao chope e à pizza do esquecimento. Mas, mesmo nos filmes ruins ou chatos, havia uma aura seca que mostrava uma verdade nascendo.
A fome e a miséria foram denunciadas nesta época e até hoje rolam como fantasmas de um pesadelo que nem o "milagre" dos anos 70 e os yuppies dos 80 conseguiram esconder. E hoje? Quais são as verdades que estão nascendo? O Brasil continua miserável como nos tempos do cinema novo, só que agora sua miséria (ou sua "pós-miséria"?) se esconde em uma superpopulação de estímulos.
Pós-miséria
O excesso dá uma impressão de abundância. Mas é miséria, disfarçada, barbárie travestida de civilização. É a estupidez oculta, atrás do progresso tecnológico.
Nunca o cinema americano foi tão caro, tão tecnicista e tão ruim. Saudades de Kubrick, Fuller, Hawks, Ford, até Griffith. Que contribui hoje o cinema americano para a parte ou a consciência do mundo?
Pula à vista a monotonia dramatúrgica dos filmes estrangeiros, todos vazados na mesma linguagem. Todos com a mesma receita narrativa, desde os draminhas existenciais doces e até a violência dos efeitos especiais.
Todos têm a mesma "missão" de fascinar-nos com o mal para nos vender um "bem". Um "bem" que é apenas o elogio de uma esperançazinha de redenção e felicidade vagabunda dentro do sistema global-americano de viver.
Um cinema brasileiro forte e co-produzindo com as redes de TV poderá criar um produto cultural diferenciado, deixando claro nossa "latinidade" e delimitando o que seria uma imagem, -como chamar?- brasileira; sim, por que não? E não venham defender ingenuamente um internacionalismo liberal que nos apassiva. Globalizar não é perder a alma.
E não falo só de cultura ou coisa assim. É também um desejo natural do mercado. A evolução da TV e a multiplicação dos "cables" exigem um aumento da produção audiovisual e sua exportação, como fizemos durante as décadas de 60 e 70.
Uma releitura do mundo atual pode ser feita por nosso cinema mais reflexivo, nós que criamos um cinema que, pela primeira vez no Terceiro Mundo, exportou a reflexão sobre nosso subdesenvolvimento.
Nós já tivemos a estética da fome e agora temos pela frente o desafio de uma nova "estética do excluído". Diante do nada ideológico dos países dominantes, talvez só um país como o nosso, rico e atrasado, louco e barroco, possa criar novos pontos de vista, nova "mise en scene" política e cultural, para longe do impasse "pós-tudo" do mundo liberal.
A nova Lei do Audiovisual pode ser o primeiro passo para a nova cultura brasileira no século 21.

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