São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 1996
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Condenar a censura não significa defender o Tiririca

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há muito de deprimente no caso da censura ao palhaço Tiririca, a começar pelo próprio Tiririca, figura lamentável, infeliz, cuja notoriedade já é sinal do horror em que estamos metidos.
Sendo contra a censura, preocupa-me um pouco a qualidade dos próprios argumentos que têm sido levantados em defesa desse palhaço.
Parece-me fraco, por exemplo, o argumento de que a censura abre um "precedente perigoso: hoje Tiririca, amanhã Caetano Veloso, depois Karl Marx... quem sabe?"
O raciocínio não me convence inteiramente. É como se, ao ver uma pessoa andando nua em praça pública, disséssemos: "Não, esse atentado ao pudor não deve ser coibido, pois daqui a pouco irão prender qualquer mulher que ande de minissaia".
Proibir alguma coisa não significa proibir tudo... Claro que o campo da liberdade de expressão se abre a toda sorte de avaliações subjetivas.
E não é fácil traçar uma linha nítida entre o censurável e o incensurável.
Mas não aconteceria o mesmo com todas as leis? Até que ponto um "atentado ao pudor" é atentado de fato? E até que ponto um homicídio é "legítima defesa" ou não?
A aplicação de qualquer lei envolve sempre uma dose de critério subjetivo. Para isso existem juízes, e não computadores. A dose varia, é claro; torna-se arbitrariedade quando o critério de quem aplica a lei se afasta em demasia do senso comum.
Mas aplicar simplesmente os "princípios constitucionais", no caso o da liberdade de expressão, é sempre agir como computador.
Em suma, acho que seria perfeitamente possível censurar Tiririca sem que a liberdade de expressão em seu todo estivesse ameaçada com isso.
A meu ver, a crítica à censura tem outros fundamentos, que não passam pelos "direitos" do cidadão Tiririca.
A livre expressão de Tiririca não me interessa a mínima. Duvido que ele saiba o que está expressando. Nem acho que cabe uma decisão sobre os motivos pessoais de Tiririca ao fazer essa canção abjeta.
Esse palhaço nunca tentou fazer de sua música um veículo de expressão de suas idéias; nem o público que o escuta se situa em um nível de discussão ideológica real.
Condenar a censura não é defender a liberdade de Tiririca, que me parece reduzidíssima e mísera de convicções.
O problema da censura não se resume às prerrogativas do "produtor de pensamento".
Se fosse assim, teríamos de dar a qualquer psicopata internado no Juqueri o mesmo espaço, digamos, que Roberto Campos, Luiza Erundina ou José Serra ocupam na imprensa cotidiana.
Está em jogo um outro fato: é que a censura não atinge só Tiririca, mas eu, você, todos nós.
Significa que alguém -um juiz, um governante- irá decidir o que podemos ver ou ouvir.
Significa reduzir o público, os cidadãos em geral, a uma situação de minoridade jurídica, na qual se pressupõe que eu ou você não temos condição de avaliar, de julgar, o que há ou não de ofensivo na música de Tiririca. Alguém a condenou por nós.
Para o palhaço, não é o pior dos males ser censurado. Do seu ponto de vista, provavelmente seria pior ter de pagar uma multa ou ser despedido da gravadora por pressões da sociedade civil.
Para o público, sim, é que a censura se torna prejudicial. Saber que 300 mil pessoas, ou coisa que o valha, gostam de Tiririca diz mais a respeito do racismo do que qualquer protesto.
Claro que os negros têm de se sentir ofendidos com a canção de Tiririca. Eu também estou ofendido.
Para o meu gosto, até a cara de Tiririca deveria ser censurada. Seu sorriso banguela, alvar, pede piedade do espectador, como que em um movimento simultâneo de agressão e de inocência.
Seu sucesso deveria ser censurado, porque é um insulto à humanidade, tanto quanto a música em questão.
A existência de Tiririca já é inadmissível; e entendo bem, portanto, o que querem os censores da música.
Querem anular, judicialmente, o "fato Tiririca". Censurá-lo é fazer de conta que ele não existe. Mas ele existe; não quero que me ocultem o fato.
Ofender-se não é argumento para censurar. Muita gente se sente ofendida de morte com a crítica de um comentarista de futebol ao desempenho do Palmeiras.
Collor se ofendeu, certamente, com o que foi publicado na imprensa a seu respeito.
Os ofendidos que reajam. Há mil maneiras de responder a uma ofensa. Só há uma errada: a censura, porque pressupõe um público incapaz de convencer-se, incapaz de tomar partido por si mesmo.
Quando perguntaram ao filósofo Kant, no século 18, qual era a definição de iluminismo, ele respondeu que iluminismo era acreditar na capacidade dos homens de pensarem com a própria cabeça. Era a maioridade do gênero humano.
Censurar Tiririca é acreditar que o gênero humano não está preparado para seu advento. Apesar do sucesso da canção, que me deprime, confio no poder que temos de execrá-la, sem censura.
Há outro argumento ponderável a favor da censura. É quando ameaça a segurança pública.
Suponha-se alguém espalhe panfletos dizendo que o banco Itaú está quebrado, que os supermercados Peralta vendem carne radioativa, que a cidade de Osasco está sob forte ameaça de terremoto.
Acho plenamente legítimo que tais panfletos sejam recolhidos pelo poder público.
Mas ninguém passará a acreditar que negras fedem a partir da canção de Tiririca. Ou que exista geneticamente nas negras uma vocação para isso.
Ou que, como disse Barbara Gancia, que o cantor de "Loraburra" convença o público de que qualquer loura é burra.
O problema, de um lado e de outro, é raciocinar conforme "princípios". Princípios constitucionais, princípios anti-racistas. Os "princípios" levam até onde a pessoa quiser.
Basta ver o que se diz conta o rodízio de carros em São Paulo. Seriam, no argumento contra o rodízio, uma agressão ao "direito de ir e vir".
Como se o cidadão não pudesse andar a pé, de táxi, de ônibus ou de metrô.
É que vivemos tanto tempo durante o regime militar, em um estado de desrespeito aos direitos humanos, que tudo se tornou agora "direito garantido pela Constituição", princípio abstrato.
Mas não há princípios abstratos a obedecer cegamente. Há só um, na verdade: o pressuposto de que se possa raciocinar em conjunto. E discutir abertamente o que acontece.

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