São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 1996
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De transparência e caipiras

ANTONIO DELFIM NETTO

O desrespeito do Poder Executivo pelo Poder Legislativo cresce a cada momento. Além da frequente tentativa de manipular a mídia para imputar-lhe problemas que deveriam ser por ele resolvidos, o abuso das medidas provisórias e a extravagância dos vetos confundem e enganam a opinião pública.
Ainda agora o Executivo emitiu a medida provisória nº 1.513, que abre crédito extraordinário no valor de R$ 106 milhões a favor do Ministério dos Transportes, utilizando recursos da Reserva de Contingência. Aparentemente tudo certo, diante da situação em que se encontram nossas estradas.
Trata-se, entretanto, de uma dotação global, distribuída por 13 Estados, sem que haja qualquer indicação do trecho ou rodovia a ser recuperada. O Executivo reserva para si essa informação, de forma a poder dispor dos recursos com maior grau de liberdade e, obviamente, poder manipulá-los franciscanamente. Ou, quem sabe, pagar velhas contas...
Mas justificar-se-ia a abertura de um crédito extraordinário? O artigo 167 da Constituição de 1988, em seu parágrafo 3º, diz literalmente: "A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62".
E o que diz o artigo 62? Simplesmente isto: "Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias".
A leitura dos dois dispositivos mostra que eles não foram construídos para serem usados com falta de cerimônia. Trata-se de medida tão especial e de tal relevância que, se estiver em recesso, o Congresso Nacional deve ser convocado extraordinariamente! Por que uma medida provisória? Por que um crédito extraordinário?
Por que essa ridícula associação entre a recuperação de estradas e as hipóteses de "guerra externa", "comoção interna" ou "calamidade pública"? Por que não utilizar o processo ordinário de projeto de lei, abrindo a especificação dos trechos a serem restaurados e, no Congresso, solicitar "urgência urgentíssima", que o aprovaria em uma ou duas semanas? Por que não dar transparência aos gastos?
Aliás a resistência do Executivo a essa transparência é visível na escandalosa justificativa do veto presidencial aos incisos 24, 26 e 28 do parágrafo 3º do artigo 3º da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Eles somente determinavam que o Executivo prestasse contas das despesas com: 1) a securitização da dívida rural; 2) o impacto dos gastos do Proer sobre as contas do Banco Central; e 3) os gastos de pessoal, encargos sociais e despesas correntes, por unidade da Federação.
As razões do veto presidencial são fantásticas: "Decidi vetar por interesse público (sic) esses dispositivos, a fim de não descumprir o prazo constitucional da apresentação da Lei de Meios ao Congresso Nacional".
Ah, se esse país não fosse de caipiras...

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