São Paulo, sexta-feira, 16 de agosto de 1996
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Bancos estaduais: "ite, missa est"

MAILSON DA NÓBREGA

Permitam-me os leitores usar a liturgia católica para fazer comparações com os bancos estaduais. Afinal, muitos de seus defensores professam uma religião, ainda que distinta: a da ação estatal.
Comecei este artigo com o título "Réquiem para os bancos estaduais", para desejar a eles repouso eterno e reconhecer que muitos tiveram uma missão terrena irrecusável. Era uma homenagem séria e não uma zombaria.
Percebi, contudo, que alguém já tinha usado título semelhante na Folha, analisando o papel de Domingo Cavallo na economia e na sociedade da Argentina, no dia seguinte ao de sua demissão do cargo de ministro da Economia. Seria falta de imaginação.
Encontrei outra inspiração na época em que fui coroinha, quando a missa era rezada em latim. Em minha cidade no interior da Paraíba, o velho padre José João, voltando-se para os fiéis, balbuciava: "ite, missa est" (estais dispensados, a missa terminou).
Não entendíamos patavina do significado daquelas palavras. Nem era preciso. Pela hora ou pelo cansaço, notávamos que a importante celebração estava chegando ao fim.
Os bancos estaduais também foram importantes. Nascidos no princípio deste século, constituíram uma das primeiras manifestações da ação direta do Estado no Brasil. O crédito rural oficial apareceu antes no Banespa do que no Banco do Brasil.
Diz-se que já naquele tempo eles serviam para financiar o desenvolvimento. Exagero. Sua função básica era a de alargar o processo de intermediação financeira, o que não era pouco.
O primeiro impulso para a sua criação foi por certo o preconceito contra o setor privado. Ainda hoje, muitos políticos têm dificuldade em entender a lógica capitalista e acham que lucro é algo torpe, à moda medieval de santo Tomás de Aquino.
Jorge Caldeira, autor de portentosa obra biográfica, mostra como o visconde de Itaboraí, ministro da Fazenda e parlamentar seguidas vezes, infernizou a vida de Mauá movido pela idéia de que a atividade bancária deveria ser monopólio do Estado.
O segundo impulso surgiu no período posterior à Revolução de 1930. Ali, as engrenagens da intervenção estatal começavam a se mover para gerar um bem-sucedido processo de desenvolvimento, no qual os bancos estaduais fizeram sua parte.
O terceiro e último impulso veio com o regime militar. A idéia era dotar todos os Estados de uma instituição financeira para gerir seu caixa e antecipar receita orçamentária. Eliminava-se a pressão que eles exerciam sobre o Banco do Brasil.
Os bancos estaduais expandiram-se na esteira do crescimento econômico do período 1968-73. Beneficiaram-se da melhoria da situação fiscal do país e da atuação de fomento do Banco Central, o que permitiu aumentar os recursos à sua disposição.
As naturais ineficiências podiam ser disfarçadas pelo custo relativamente baixo de seus recursos e pela ausência de competição. A menor influência política em suas operações reduzia os riscos de empréstimos ruinosos.
A década de 80 foi o início do fim. A crise fiscal esgotou sua sustentação financeira. A crise da dívida externa, que afetou os Estados endividados em moeda estrangeira, transbordou para bancos estaduais como o Banespa.
A partir de 1982, com o reinício das eleições diretas para governador, começou a monótona série de desmandos quadrienais em certos bancos estaduais. Intensificaram-se o uso político de suas operações e os respectivos desastres financeiros.
Malgrado o esforço de alguns governadores, tornou-se difícil restaurar seu prestígio e viabilidade.
O ajuste para atuar em ambiente de estabilidade e competição está longe do seu alcance. Mesmo dispondo de talentos, seus vícios, sua cultura e o ambiente em que atuam são obstáculos intransponíveis.
O programa lançado na semana passada pelo governo federal tem tudo para constituir o início de um ordenado processo de extinção dos bancos estaduais, pelo menos em sua forma atual.
Tal qual naquela missa em latim, a sociedade, cansada, intuiu que chegou o fim e pode apoiar dito processo. Se for assim, em mais um ou dois períodos de governo restarão lembranças, que esperamos não sejam somente as más. Rezemos ao Senhor.

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